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segunda-feira, 8 de abril de 2013

Ensinar Direito para administrar a justiça

Recentemente noticiada, a cooperação entre o Ministério da Educação e Ordem dos Advogados do Brasil para a definição de novas regras de autorização e avaliação de cursos jurídicos é uma excelente oportunidade para que avancemos no debate sobre o ensino do Direito no Brasil. É preciso, contudo, que os horizontes desse debate sejam ampliados.

Em primeiro lugar, é preciso reconhecer que o problema não está necessariamente na quantidade dos cursos, mas em sua qualidade. O Brasil ainda enfrenta o desafio de incorporar um número maior de jovens em idade universitária no ensino superior. Nesse desafio, a expansão da oferta é imprescindível. As questões que devem ser respondidas são: precisamos de mais bacharéis em Direito? Para qual função na sociedade?

Responder a essa questão nos leva a um segundo ponto: os cursos de Direito não formam e não devem formar apenas advogados. Formam também, intencionalmente ou não, juízes, promotores, professores, funcionários públicos, empresários, etc. Por isso, a função do bacharel em Direito e também dos cursos jurídicos na sociedade deve levar em conta as múltiplas interações do Direito com a dinâmica social, política e econômica, sem, contudo, pretender um papel totalizante na regulação da vida social.

Essa interação, portanto, deve ser analisada levando-se em conta diferenças regionais e as diversas demandas sociais por outros profissionais com formações diferentes: engenheiros, pedagogos, cientistas sociais, médicos, etc. Repensar a política do Estado para o ensino do Direito no Brasil só fará sentido se esse esforço incluir também a reflexão sobre outras formações de nível superior e técnico e suas específicas contribuições a um país em processo de desenvolvimento. O Direito tem seu lugar nesse processo, mas é preciso defini-lo com ponderação e consciência da diversidade de conhecimentos e demandas sociais igualmente relavantes.

É preciso pensar que o Direito é a linguagem oficial do Estado e, portanto, os bacharéis em Direito podem se tornar, quando devidamente qualificados para tanto, os operadores de uma burocracia eficiente na promoção de direitos e democrática em sua relação com a sociedade. Para isso, os cursos jurídicos devem se prestar a um papel mais elevado do que o de preparação formalista para concursos públicos, para se tornarem espaços de reflexões e práticas inovadoras sobre a gestão jurídica do Estado e o papel do Direito na criação e na implementação de políticas públicas.

É necessário, ainda, considerar que a solução pacífica dos conflitos sociais, mesmo quando não encontra caminhos apenas no Judiciário, pode se beneficiar muito dos saberes e procedimentos jurídicos, aplicados à mediação empresarial, familiar e comunitária, à arbitragem e à conciliação. E, mesmo quando os conflitos procuram as vias judiciais para sua solução, é preciso reforçar o papel e as competências técnicas daqueles que lidam diretamente com os conflitos, e que não se resumem à tríade advogado-juiz-promotor; refiro-me, especificamente, aos servidores do Judiciário e de órgãos administrativos de segurança pública, assistência social e defesa do consumidor, atores em geral esquecidos quando se fala de reforma da administração da justiça e do ensino jurídico no Brasil.

Para isso, a interlocução do MEC para reformar o ensino do Direito deve incluir uma gama maior de atores: os Conselhos Nacionais de Justiça (CNJ) e do Ministério Público (CNMP) e o Ministério da Justiça, que possuem dados e projetos sobre a oferta de justiça estatal e alternativa no país; a Escola Nacional de Administração Pública (ENAP), o Ministério do Planejamento e o Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (IPEA), capazes de produzir dados e pensamento sobre a administração do Estado e a qualidade da cidadania; a Associação Brasileira do Ensino do Direito (ABEDi), as próprias faculdades de Direito e a crescente comunidade de pesquisadores e docentes da área, que têm concepções próprias da produção de conhecimento e do ensino jurídico; entre outros. É urgente, em suma, que a reforma do ensino do Direito no Brasil não leve apenas em conta os interesses de um ou outro grupo profissional ou acadêmico, mas sim que coloque o Direito e seus operadores como os responsáveis por uma ampla concepção de administração da justiça para um Brasil melhor.

(Artigo originalmente publicado no site Última Instância em 5 de abril de 2013).

 

segunda-feira, 18 de março de 2013

Só uma brincadeira

Estudantes de DIREITO da UFMG promovem trote racista, com referências jocosas à escravidão e ao nazismo.

Vejo pela internet muita gente se mostrando surpresa por se tratar de um curso de Direito; acredito que essa surpresa se deve a uma suposição, razoável, de que nos cursos de Direito e entre seus professores e alunos há maior observância a leis e aos direitos. Eu, porém, não me surpreendo.

Os cursos de Direito, no Brasil, têm sido um lugar privilegiado de reprodução de nossas elites, especialmente por meio de faculdades mais antigas e reputadas como a própria UFMG. E, ao produzirem novos membros dessa elite, as faculdades "tradicionais" reproduzem também suas ideologias e seus mecanismos mais sutis de dominação. Por isso é que, se das faculdades de Direito saíram muitos "heróis da liberdade" (de abolicionistas ao final do Império a militantes contrários à ditadura militar de 1964), delas saíram também as muitas mentes que sustentaram, nos planos jurídico e político, as nossas ditaduras do século XX e outras violações de direitos pelo Estado brasileiro (de Francisco Campos a Gama e Silva, entre outros).

Além disso, a institucionalização do discurso dos direitos humanos na ordem jurídica e no ensino do Direito não é suficiente para se criar e manter uma cultura de direitos humanos. No plano político, Edson Teles já mostrou, em ótimo texto recente, os riscos de que espaços institucionais voltados para a defesa dos direitos humanos sejam apropriados por discursos que negam o potencial crítico e de denúncia desses espaços e da própria concepção original dos direitos humanos - como é o caso da eleição de Marcos Feliciano como presidente da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados.

No plano do ensino do Direito, essa institucionalização do discurso dos direitos humanos também pode se dar de forma apenas formal, superficial; e, assim, apenas formalmente aceito e replicável, o discurso dos direitos humanos pode ser também facilmente verificável ao final do semestre letivo em uma prova dissertativa (ou de múltipla escolha, que é o que a OAB tem feito em seu Exame de Ordem com questões de direitos humanos e filosofia). Não me espantarei se os autores do trote da UFMG já tenham sido aprovados, ou ainda venham a ser aprovados nos períodos subsequentes, sem muitos problemas, nas disciplinas de Ética, Teoria da Constituição e Direito Constitucional que fazem parte da grade curricular de seu curso.

E não me venham com a alegação de que "é só uma brincadeira". Não tem graça fazer brincadeira com quem só se ferra na vida e na história. Não tem graça fazer brincadeira com o sofrimento de um povo, de gerações dizimadas pelo genocídio e pelo holocausto.

Graça boa mesmo é fazer piada com quem domina, com quem está no poder. O problema é que é muito difícil fazer graça de si próprio.


terça-feira, 19 de junho de 2012

Ex-advogado

Ontem protocolei o que espero que seja minha última petição como advogado – justamente, o pedido de cancelamento de minha inscrição como advogado, na Seccional de São Paulo da Ordem dos Advogados do Brasil.

Em determinado momento de minha trajetória, ser advogado mostrou-se o caminho "natural" a ser seguido. Após várias crises vocacionais durante o curso de Direito, um interesse inicial pelo garantismo constitucional do Direito Processual me levou a um encantamento pelo Direito Processual Penal, e daí, ao estágio em advocacia criminal.

Tive o privilégio de ser o único estagiário em uma banca renomada de advocacia criminal, que funcionava ainda nos moldes tradicionais da advocacia: poucos advogados (naquele caso, apenas três), trabalhando em sistema de associação (sem a constituição de uma sociedade de advogados). Naquele escritório, compartilhei da memória de advogados que atuaram em defesa de presos políticos do regime militar e em outras questões de direitos humanos. Aprendi muito de uma advocacia artesanal, num momento em que a profissão atingia talvez seus maiores níveis em termos de massificação e organização do serviço em escala comercial, como nos grandes escritórios que atraíam grande parte de meus colegas de faculdade.

Já certo de minha efetivação como advogado naquele pequeno, seleto grupo, tomei uma decisão radical, cujo desdobramento mais tardio talvez tenha sido a petição que protocolei ontem na OAB: um tanto desiludido com certas práticas da advocacia e do sistema de justiça, e alimentando há algum tempo o desejo de seguir uma carreira acadêmica (ainda que, eventualmente, em paralelo a uma atuação prático-profissional), decidi ingressar em um mestrado em Ciências Sociais, para poder me dedicar aos temas que me interessavam no mundo do Direito, sem, contudo, as limitações de uma atuação profissional estrita. Para isso, acreditava naquele momento, eu deveria me dedicar totalmente a esse objetivo, sob pena de ser engolido pela rotina intensa da advocacia em um pequeno, mas requisitado escritório, e com isso acabar adiando o ingresso em uma pós-graduação.

Os primeiros anos desse novo rumo foram difíceis. Prolonguei por algum tempo a vida de estudante dos primeiros anos de faculdade (mesada dos pais, alguns bicos, hábitos modestos), enfrentei a desconfiança e o espanto de amigos, familiares e colegas de profissão, fui reprovado nas primeiras tentativas de ingresso no mestrado em Ciência Política e em Sociologia. Hoje, tenho certeza de que tomei o rumo certo. Mestre e doutor em Ciência Política, sei que construí uma trajetória até agora relativamente consistente na área acadêmica, me dedicando a temas que nunca se afastaram do mundo do Direito, como planejei inicialmente: acesso à justiça, reforma do Judiciário, profissões jurídicas, ensino do Direito.

Durante esse percurso, porém, mantive ativo meu vínculo com a OAB, um tanto por insegurança quanto ao futuro, um tanto pela esperança (nem sempre assumida) de, de alguma forma, encontrar um tipo de atuação profissional como advogado que me satisfizesse pessoalmente e que permitisse tocar adiante minha carreira acadêmica. Fui assessor jurídico na administração pública municipal, e percebi que, se tivesse tomado gosto pelo Direito Administrativo ainda estudante, talvez minha trajetória fosse diferente – mas é impossível voltar atrás... Fui coordenador de um Núcleo de Prática Jurídica em curso de Direito (posição que, de acordo com as regras da OAB, exige inscrição como advogado) e tive a oportunidade de aliar a reflexão sociológica sobre ensino do Direito e profissões jurídicas a um projeto pedagógico prático-profissional, de formação de novos advogados. Atuei no setor de relações institucionais ("lobby") de uma associação de consumidores, e nessa função apresentar-me como advogado sempre abriu portas e desfez resistências. No mais, tive um ou dois casos de "pequenas causas" cíveis e criminais, em geral para ajudar amigos, com nenhuma ou simbólicas remunerações.

Porém, conforme minha carreira acadêmica avançou e se consolidou, a insegurança quanto ao futuro se dissipou e minha satisfação pessoal encontrou cada vez mais alimento nas atividades de pesquisa e docência. Por isso, manter meu vínculo com a OAB, minha inscrição como advogado tornou-se algo cada vez mais desnecessário: não precisaria mais recorrer à advocacia como "plano B" de subsistência, e não precisaria mais encontrar em um tipo ainda desconhecido de advocacia a satisfação que as aulas e as atividades de pesquisa me davam.

Mais do que isso, eu passei a não me identificar mais como advogado. Isso não quer dizer apenas que passei a não mais me apresentar como advogado, mas que, essencialmente, deixei de compartilhar da imagem pública e do sentimento de corpo que caracterizam a profissão. Sem assinar uma petição há mais de cinco anos, com pouquíssima experiência prático-profissional como advogado (apesar de 10 anos como inscrito na OAB), passei a sentir um certo desconforto em me apresentar como membro de um grupo profissional de cujos valores fundamentais deixei de compartilhar, e de cujas condições de existência – a prestação de um serviço de acesso à justiça – eu já não mais participava.

Dificilmente ouvimos alguém dizer que é um "ex-advogado". Mesmo pessoas que pouco atuam, porque passaram a se dedicar a outras atividades, mantêm sua inscrição e sua carteira da OAB e eventualmente se identificam como advogados. Entre eles, muitos colegas acadêmicos com trajetórias muito parecidas com a minha. Inclusive desses colegas acadêmicos, ouvi reações espantadas e desmotivadoras quando anunciava minha intenção de cancelar minha inscrição na OAB. Por isso, e se não fosse a forte e intencional carga política da minha atual identificação como "professor" (de formulários a serem preenchidos a apresentações cotidianas do convívio social, com o objetivo de afirmar que a opção pela docência e pela pesquisa também constitui uma identidade profissional e social), eu acharia graça e certa exclusividade em me apresentar, a partir de agora, como um "ex-advogado".

quarta-feira, 30 de maio de 2012

A vã filosofia

No dia 28 de maio último, a Diretoria do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) tomou a decisão de incluir questões de Filosofia na avaliação que realiza por meio do Exame de Ordem. O objetivo alegado pela OAB – que acatou recomendações do Colégio de Presidentes de Comissões de Exame de Ordem e de uma comissão de especialistas – é o de avaliar competências relacionadas à reflexão crítica e à ética dos candidatos ao exercício da advocacia.

O objetivo é certamente louvável, daqueles que dificilmente encontra opositores – tanto é que, mesmo entre críticos do Exame de Ordem, a decisão encontrou apoio, talvez por indicar uma possível modificação no modelo de avaliação adotado pela OAB para selecionar os candidatos aptos ao exercício da advocacia.

Tenho minhas dúvidas, porém, em relação à adequação da medida aos objetivos esperados. A função das disciplinas incluídas no chamado Eixo de Formação Fundamental do curso de Direito – dentre as quais está a Filosofia, conforme definição das Diretrizes Curriculares Nacionais – é a de fornecer os fundamentos gerais, humanísticos e axiológicos para a formação crítica, reflexiva e contextualizada do futuro bacharel em Direito. Essa formação será desenvolvida, ainda de acordo com as Diretrizes Curriculares Nacionais, por meio dos conteúdos relacionados ao Eixo de Formação Profissional (os conhecimentos específicos dos diversos ramos do Direito) e ao Eixo de Formação Prática (que objetiva a integração entre prática e conhecimentos teóricos, por meio de estágios supervisionados, trabalho de conclusão de curso e atividades complementares). Ao longo de todo o texto das Diretrizes Curriculares Nacionais e da descrição dos três eixos de formação está claro o objetivo de articulação entre eles, e o de integração entre os conhecimentos específicos e a formação geral, entre a teoria, a prática e a realidade social.

Ao se ensinar Filosofia (ou Sociologia, Economia, Psicologia) em um curso de Direito, não se pretende, portanto, formar um filósofo (ou um sociólogo, economista, psicólogo).  Não que não se possa formar um desses – e dentre outros tantos exemplos certamente melhores, cito a mim mesmo como um cientista político formado por um curso de Direito, ainda que eu só considere minha formação completa após a pós-graduação específica em Ciência Política, e muita prática e leitura em teoria e pesquisa sociológica.

Acredito que o objetivo dos especialistas que ajudaram o Conselho Nacional de Educação a redigir as Diretrizes Curriculares Nacionais de 2004 era o de formar bons bacharéis em Direito, advogados ou não, com conhecimentos suficientes e necessários a uma compreensão crítica e rigorosa da realidade, para além das leis e das práticas profissionais propriamente jurídicas.

Por essa razão, suspeito que a mera inclusão de duas questões específicas de Filosofia do Direito, mesmo que restritas a ramos da Filosofia essencialmente ligados à aplicação do Direito como são a Hermenêutica e a Ética, não cumpra o objetivo esperado de se avaliar a capacidade crítica e a carga ética do futuro advogado. Assim como o ensino e a aprendizagem da Filosofia, em um curso de Direito, servem para fundamentar o desenvolvimento do estudante em sua área de conhecimento específico, teórico e prático, a avaliação de competências hermenêuticas e éticas do futuro advogado deveria se dar de forma intrinsecamente ligada à avaliação de suas competências jurídicas,  práticas e profissionais.

Isso não será possível, contudo, por meio do acréscimo de duas questões de Filosofia do Direito ao Exame de Ordem, ao lado de outras tantas questões de conhecimentos específicos. Seria preciso, ao contrário, que as questões de conhecimentos específicos, voltadas para a avaliação de competências práticas e profissionais, fossem também capazes de avaliar a formação geral, humanista e axiológica do futuro advogado, colocando-o diante de situações hipotéticas nas quais a compreensão rigorosa, científica e crítica do mundo, e a capacidade de atuação prática de acordo com valores fossem tão importantes quanto o conhecimento "técnico" necessário à solução de um problema jurídico.

O problema é que já há algum tempo o Exame de Ordem – dogmático, conteudista e baseado em memorização – perdeu sua capacidade de avaliar efetivamente competências e habilidades profissionais de futuros advogados, para se tornar uma avaliação mal disfarçada de cursos e instituições de ensino jurídico, um recurso de defesa de um mercado profissional saturado e empobrecido pela massificação. Sem uma reformulação ampla do Exame de Ordem, que passa necessariamente por uma reflexão sobre seus objetivos, introduzir a Filosofia do Direito na prova objetiva apenas reproduz a tradição bacharelesca e de falsa erudição do Direito brasileiro. A novidade não vai levar necessariamente os cursos e os estudantes de Direito a uma formação crítica, interdisciplinar e reflexiva, mas talvez dê bons retornos aos redatores de resumos e apostilas, e aos adestradores em geral.


quinta-feira, 22 de setembro de 2011

Os cursos jurídicos e a educação republicana

No último dia 19 de setembro realizou-se na sede da Direito GV o evento Os cursos jurídicos e a educação republicana, organizado pela Abedi (Associação Brasileira de Ensino do Direito), e que contou com o apoio das Escolas de Direito de São Paulo e do Rio de Janeiro da Fundação Getúlio Vargas.

As discussões feitas durante o evento foram muito interessantes e trouxeram novo fôlego aos debates sobre os rumos do ensino jurídico no Brasil. Se há mais de 30 anos fala-se em crise do ensino jurídico, é certo que as propostas para a resolução dessa crise se diversificaram ao longo do tempo, com o surgimento concomitante de atores e discursos diversos sobre como se alcançar um ensino jurídico de qualidade. A acelerada expansão da oferta de ensino superior nas últimas décadas, e a recente e intensa ascensão social das classes populares à chamada "nova classe média" — movimento que passa também pela inclusão educacional — apenas tornam o cenário do ensino jurídico mais complexo, demandando reflexões inovadoras e avançadas para seu aprimoramento.

Alguns consensos resultantes das discussões no evento da Abedi sinalizam caminhos importantes para a renovação do debate sobre o ensino jurídico no Brasil. O primeiro deles parece ser o de que, para além de um debate metodológico, curricular e pedagógico (que já é bastante sofisticado hoje no Brasil), e de uma discussão ampla sobre a política estatal para os cursos jurídicos (ainda fortemente baseada em uma falsa dicotomia "qualidade versus quantidade"), aqueles interessados na compreensão e no aprimoramento da situação atual do ensino jurídico devem focar suas atenções nos mecanismos mais precisos da regulação, da avaliação e da supervisão dos cursos e instituições de ensino superior mantidos pelo Ministério da Educação.

Afinal, é por meio desses mecanismos regulatórios (diretrizes curriculares, instrumentos e indicadores de avaliação de qualidade, decretos e portarias educacionais) que o Estado, por meio do MEC, busca estabelecer os padrões mais detalhados de sua política ampla para o ensino superior em relação a projetos pedagógicos e outras questões curriculares e metodológicas, incluindo o perfil do egresso e o papel do docente. Se por um lado os participantes do evento ressaltaram os avanços da regulação da educação superior nos últimos anos, reduzindo o espaço da "política de balcão" no MEC e aumentando o rigor e a objetividade das práticas estatais nesse setor, por outro lado enfatizou-se a importância do aprimoramento daqueles mecanismos regulatórios, de modo que o objetivo de formalização, racionalização e objetivação do processo de autorização e reconhecimento de cursos mantenha um espaço necessário para a diversidade de modelos de ensino jurídico e de projetos institucionais na área.

Um segundo ponto importante apresentado no evento da Abedi foi a necessidade, justamente, de se pensar e praticar a diversidade no ensino jurídico, em termos de modelos de ensino e projetos institucionais, que sejam capazes de atender às diversidades sociais e regionais do país, bem como aos diferentes interesses que levam um estudante a procurar a formação em Direito. Nesse aspecto, os participantes do evento apontaram para a necessidade de se pensar em cursos jurídicos que estruturem sua oferta para além da formação para as atividades profissionais tradicionais do Direito — advogado, juiz, promotor — e sejam capazes de formar indivíduos para atividades profissionais que tenham no Direito, se não um requisito essencial, ao menos um diferencial desejável.

Ao prometerem futuros profissionais muitas vezes bloqueados por mercados saturados, clivagens sociais e hierarquias de prestígios entre as atividades relacionadas ao Direito, muitos cursos jurídicos acabam contribuindo para a frustração de expectativas de bacharéis que acabam se destinando a atividades tidas por secundárias ou estranhas à sua área de formação — quando não ao desemprego. Nesse aspecto, um debate como esse, pela via da formação jurídica, pode inclusive contribuir para a valorização de funções e atividades essenciais à administração da justiça — como a polícia e os serventuários da justiça — hoje tidas como secundárias ou menos valorizadas pelos estudantes que buscam nos cursos jurídicos um caminho para um bom posicionamento profissional e social. Além disso, colabora para a reflexão sobre o papel do Direito e sobre qual a formação desejável para atividades profissionais que têm relação direta com a administração pública — o funcionalismo público em geral, dos técnicos administrativos aos auditores fiscais —, e que hoje acabam recepcionando bacharéis sem outras opções ou apenas preocupados com salário e estabilidade.

Porém, creio que o consenso mais importante resultante do evento promovido pela Abedi foi o que busca estabelecer uma identidade social, profissional e política para o docente em Direito. Elemento essencial de qualquer projeto educacional, a docência, no caso do ensino jurídico, tem dificuldades em se afirmar como alternativa profissional e estilo de vida exclusivos daqueles acadêmicos ligados ao Direito, sendo ainda predominante o perfil do profissional-docente — o advogado, promotor ou juiz que, com ou sem formação e titulação específica, dedica-se ao magistério como atividade importante, mas não exclusiva em sua subsistência e em seu projeto de vida. Construir uma identidade (ou melhor: diversas identidades) do docente em Direito passa necessariamente pelos debates sobre a formação para a docência — papel esperado dos mestrados e doutorados, em geral ineficientes nesse aspecto —, sobre suas condições objetivas de trabalho — debate que deve ir além dos aspectos estritamente trabalhistas, alcançando mesmo outros elementos relacionados ao desenvolvimento do ensino, da pesquisa e da extensão — e sobre o posicionamento e a visibilidade do docente como um ator político capaz de influenciar os debates acadêmicos, legislativos e regulatórios sobre os rumos do ensino do Direito no Brasil.
 
Frederico de Almeida é Doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo e Coordenador de Graduação da Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas (DIREITO GV)
 
(Artigo originalmente publicado no site Última Instância em 21 de setembro de 2011).

segunda-feira, 27 de junho de 2011

Degradação da docência em Direito

Com algum atraso, compartilho aqui no blog artigo de Evandro Carvalho, Vice-Diretor de Graduação da FGV Direito Rio e Presidente da Associação Brasileira de Ensino do Direito (ABEDi). No texto, o autor aponta alguns fatos lamentáveis (ou, no mínimo questionáveis) ocorridos em concursos para professores das duas faculdades de Direito mais antigas do Brasil (a de São Paulo, incorporada à USP e a do Recife, integrante da UFPE), e faz uma análise dos tipos de recursos (ou capitais) valorizados na docência em Direito, em um campo marcado pela relação nem sempre bem equacionada entre saber acadêmico e poder político. Nesse ponto, Evandro Carvalho desenvolve de maneira muito interessante um ponto que apresentei em minha tese de doutorado.
 
O artigo pode ser lido aqui.

quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

Exame de Ordem: controle de mercado ou avaliação profissional?

Em sua mais recente edição realizada pela prestigiada FGV (Fundação Getúlio Vargas), o Exame de Ordem, mantido pela OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) como condição para o exercício profissional, é alvo de críticas e suspeitas de erros, que poderiam geram, inclusive, sua anulação. 

Não fossem as esperanças depositadas na seriedade e na competência da FGV para a aplicação da prova – substituindo o igualmente prestigiado  (ao menos até denúncias de fraude) Cespe (Centro de Seleção e Promoção de Eventos), da Universidade de Brasília, as críticas não seriam nenhuma novidade. Há tempos o Exame de Ordem é contestado pela sua efetiva capacidade de avaliar as habilidades profissionais, e por sua suposta falta de competência, lisura e objetividade na seleção de novos advogados.

A unificação de um Exame de Ordem nacional foi uma decisão controvertida do Conselho Federal da OAB, e que encontrou resistências em várias seccionais. Um dos argumentos para a unificação do Exame nacional foi justamente a de refutar críticas e suspeitas quanto à lisura e à seriedade da prova, supostamente ameaçadas por interesses locais escusos, indevidamente representados nas seccionais e nos responsáveis pela organização da avaliação. As denúncias que atingiram a Cespe, e agora, ainda que com menor intensidade, a FGV não se diferenciam em nada, de maneira geral, das críticas anteriores que atingiam os Exames locais.

A diferença é que, num Exame nacional, esses problemas tendem a ganhar repercussão maior. Além disso, a escala de um Exame nacional, com todas as suas implicações em termos de logística para produção, aplicação e correção das provas, certamente abre flancos maiores e mais sensíveis à ocorrência de problemas, voluntários ou não – e a OAB deveria se lembrar disso antes de criticar tão feroz e apressadamente o Ministério da Educação (MEC) pelas falhas no Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), como bem lembrou o advogado Maurício Gieseler, consultado pelo Última Instância.

Não acredito que o Exame de Ordem, unificado ou não, seja perfeito e imune a falhas, sejam elas operacionais, sejam elas típicas fraudes. Como disse, num Exame nacional, é maior a probabilidade de certos problemas ocorrerem, dada a magnitude da operação que envolve a aplicação da prova. 

Por outro lado, sou bastante cauteloso em relação a certas "teorias da conspiração" que veem no Exame uma confabulação de poucos dirigentes da advocacia para aprovarem pessoas determinadas – seus parentes, conhecidos, alunos, amigos dos amigos, etc. 

Acredito mesmo que um Exame nacional diminua as chances de influências pessoais indevidas na seleção dos candidatos. Porém, estou convencido de que há uma intencionalidade da OAB na realização do Exame, que é institucional (e não pessoal, de alguns dirigentes) e que vai além do objetivo declarado de avaliar competências e habilidades profissionais para o exercício da advocacia.

A mobilização da OAB pela instituição de um exame obrigatório para o exercício profissional vem desde pelo menos a década de 1960, quando o Estatuto da Advocacia de 1963 previa o Exame de Ordem como uma das formas de ingresso na profissão, ao lado dos chamados "cursos de estágio", mantidos pelas próprias faculdades de direito, e cuja conclusão habilitaria automaticamente o bacharel como advogado. Foi somente com o Estatuto de 1994 que o Exame de Ordem se afirmou como única forma de ingresso do bacharel em direito na profissão.

Não por acaso, esse período conheceu uma expansão nunca antes vista do número de cursos de direito criados no país, fenômeno que iria se acentuar na década de 1990. Também nesse período (e por conta justamente da expansão do ensino jurídico), a advocacia se submeteu a um intenso processo de massificação, acompanhado da precarização das formas de exercício profissional. 

A OAB, como entidade representante e controladora da profissão, vem agindo desde então, de modo um tanto errático e ineficiente, para combater os efeitos negativos dessa massificação. Nessa sua ação, Exame de Ordem e ensino jurídico tornaram-se questões centrais da política da OAB em relação ao seu mercado de trabalho e à sua própria capacidade de controlar o exercício profissional.

Daí porque o Exame de Ordem tenha também como objetivo – se é que não pode ser esse considerado seu objetivo central – o de controlar o mercado profissional, restringindo a entrada de novos advogados. E, ao atuar nesse sentido, o Exame converte-se em uma avaliação não dos bachareis, mas sim dos cursos jurídicos. Ao contrário do objetivo de controle do mercado – eventualmente negado pelos dirigentes da Ordem – o objetivo de avaliação dos cursos jurídicos é expressamente assumido pela OAB, que com base nos resultados alarmantes de reprovação no Exame de Ordem pressiona o MEC por mudanças na política sobre as instituições de ensino, além de criar sua própria mobilização, por meio do selo "OAB Recomenda", que certifica a qualidade de cursos com base  nos resultados de seus alunos no Exame.

Dessa forma, OAB e MEC têm sido, nas últimas décadas, ora parceiros ora rivais na política do ensino superior jurídico. Formalmente, cabe ao MEC avaliar cursos, e à OAB avaliar profissionais. Por conta das pressões do mercado de trabalho, a OAB acabou por invadir as atribuições do MEC, que por muito tempo foi não só omisso, como permissivo em sua missão. Nos últimos anos, o MEC tem sido mais rigoroso na autorização de novos cursos, bem como na supervisão e na renovação dos atos autorizativos dos cursos já existentes – movimento que atraiu novamente a simpatia da OAB, que se aliou ao Ministério nesse processo. 

Por outro lado, ao perder o foco do que deveria ser uma avaliação para fins de certificação profissional, a OAB perdeu também a chance de melhorar seu Exame de Ordem, investindo em inovações metodológicas de avaliação de competências e habilidade, e numa reflexão mais saudável (e menos corporativa) sobre a diversificação e as transformações da advocacia, e sobre a evolução do ensino jurídico num país com grande dificuldade em garantir direitos e justiça para todos.

*Frederico de Almeida é advogado e cientista político. Participou de diversas pesquisas sobre a administração e a reforma da justiça. Foi pesquisador e Coordenador-adjunto do Núcleo de Pesquisas do IBCCRIM; pesquisador do CEBEPEJ e do Ministério da Justiça; Coordenador de Prática Jurídica da Escola de Direito de São Paulo da FGV; e Coordenador-Geral de Supervisão da Educação Superior do Ministério da Educação. Atualmente é assessor de Relações Institucionais da PROTESTE Associação de Consumidores. Edita o blog POLÍTICA│JUSTIÇA (http://politicajustica.blogspot.com)
 
(Artigo originalmente publicado no site Última Instância em 8 de dezembro de 2010)

segunda-feira, 5 de novembro de 2007

A OAB e o ensino jurídico

Saiu no Consultor Jurídico:


A política da advocacia para o ensino jurídico, embora no discurso aponte para um problema de qualidade da formação profissional, tem por substrato preocupações corporativas com a expansão da base profissional, seu assalariamento e empobrecimento. O crescimento da quantidade de bacharéis em direito gera de fato pressões sobre o controle do exercício profissional que a advocacia exerce por meio da Ordem, e a qualidade da prestação profissional é apenas um de seus desdobramentos. Percepções de dirigentes sugerem que grande parte da movimentação processual do Tribunal de Ética e Disciplica da OAB de São Paulo é de processos disciplinares por inépcia profissional de advogados - o que confirma que a expansão da quantidade gerou problemas de qualidade, mas também que nem o rigor mostrado pela OAB na aplicação de seu Exame de Ordem como barreira de seleção e recrutamento parece conseguir impedir.
Por mais autônomas - e, nesse sentido, profissionais - que sejam, as profissões juridicas relacionam-se com o Estado em torno de três campos de políticas estatais: a do ensino, que vai legitimar e oficializar as expertises e titulos característicos da profissão; a de organização da justiça, que inclui a própria organização profissional, e por isso estabelece as divisões do trabalho jurídico a partir do trabalho judiciário e processual; e, por fim, o campo de políticas mais amplas que definem direitos e regulam a vida social, e, em última análise, o campo de atuação da profissão. No caso da advocacia, não é exagero dizer que a OAB tem orientado suas políticas nessas três frentes pelo predomínio, em sua agenda, de temas relacionados à própria organização profissional, mais especificamente, à sua capacidade de controle sobre o exercício profissional. Embora formalmente essa capacidade esteja bem definida pelo Estatuto da Advocacia, e relativamente bem sedimentado na relação com as demais profissões jurídicas, o controle sobre o mercado, aspecto fundamental do profissionalismo, vem sendo afetado pela expansão do número de bacharéis. Isso fez com que nas últimas décadas, as demandas propriamente profissionais ("corporativas") da advocacia extrapolassem o campo da política de organização da justiça, para impactar as políticas da advocacia também para os direitos e para o ensino jurídico: no primeiro caso, orientando a ação da OAB na defesa e ampliação do monopólio profissional sobre novas áreas de regulação social e esferas de resolução de conflitos, e também na resistência política a reformas de acesso à justiça informalizantes e desburocratizantes de procedimentos; no segundo caso, sustentando as pressões e gestões políticas da OAB em busca de acesso às arenas decisórias da política de ensino jurídico - paradoxalmente, uma área do Estado relativamente imune à influência da OAB, se comparada com sua participação na organização da justiça (concursos públicos, quinto constitucional, controle externo) e na representação da sociedade civil em arenas oficiais de participação e representação da sociedade civil em políticas públicas (conselhos consultivos).
Por isso a vinculação da avaliação do MEC aos resultados do Exame de Ordem pode ser considerada uma vitória da OAB em sua política para o ensino jurídico. Afinal, desde pelo menos o início dos anos 80 a expansão do ensino jurídico privado é tema de pauta, e pelo menos desde a década de 1990, também de agenda política da Ordem. Nesse sentido, foram inúmeras as gestões da OAB junto ao MEC para que seus pareceres, já previstos formalmente no processo de aprovação de cursos jurídicos, tivessem efeitos vinculantes na decisão final do Estado. Importa saber, agora, qual o alcance efetivo desse episódio sobre a política de ensino jurídico, e também por quais caminhos se deu essa influência aparente da Ordem.

quinta-feira, 23 de agosto de 2007

Os mitos do bacharelismo e as fronterias do Território Livre

A primeira postagem desse blog vem um pouco por acaso. Não seria essa não fossem os acontecimentos dos últimos dias ocorridos no Largo São Fransciso, São Paulo.
Refiro-me muito especialmente à ocupação da Faculdade de Direito da USP por ativistas das Jornadas pela Educação, à ação de desocupação pela Polícia Militar paulista, e particularmente à reação dos professores Dalmo de Abreu Dallari e Goffredo da Silva Telles Júnior aos fatos. Dalmo e Goffredo são dois grandes ícones da história recente da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, e uma referência especialmente para aqueles bacharéis engajados em lutas democráticas e sociais; por isso, e por me incluir entre estudantes engajados do Largo, refiro-me assim a eles, pelo primeiro nome, valendo-me da intimidade que sempre julgamos ter em relação a esses professores.
Goffredo é especialmente reverenciado pela histórica leitura pública da Carta aos Brasileiros no pátio daquela escola, há exatos 30 anos, documento de repúdio ao regime militar articulado por advogados progressitas, seus ex-alunos, e que procuraram o popular mestre para conferir autoridade e legitimidade à ação política que pretendiam.
Dalmo Dallari foi mais popular entre gerações futuras, já na redemocratização do país, quando militou junto à Comissão de Justiça e Paz, vinculou-se ao Partido dos Trabalhadores, foi Secretário de Negócios Jurídicos do governo municipal de Luiza Erundina e Diretor da Faculdade de Direito. Fui aluno de Dalmo anos após esses fatos mas, para a minha geração, ele foi por muito tempo o "eterno candidato" dos estudantes de esquerda para a eleição indireta do Diretor da Faculdade, muitas vezes contra sua vontade, sendo sempre e cada vez mais rara opção dentre os quadros extremamente conservadores que sempre dominaram o magistério da "velha academia".
Pois bem. Na última terça-feira (21 de agosto) manifestantes das Jornadas pela Educação, especialmente ativistas dos Movimentos dos Sem Terra e dos Sem Universidade ocuparam o prédio do Largo São Francisco, uma das tantas manifestações ocorridas no Brasil, tendo inclusive, ao que consta, data e horário certos para a saída do local. Não vou entrar no mérito do movimento e de suas demandas, embora seja inevitável ao final posicionar-me quanto à ação de ocupação, já que o objetivo desse texto é comentar os cometários daqueles professores a ela e à reação da Polícia Militar. Segundo consta do jornal Folha de São Paulo de hoje, os dois professores deram razão à ação da PM, solicitada pelo Diretor da Faculdade, professor João Grandino Rodas. Por trás de ambas as declarações, está um mito muito antigo e reproduzido entre diversas gerações de alunos da Faculdade, o do "Território Livre" do Largo São Francisco.
Segundo esse mito, cujas origens se perdem nas repetidas ações de estudantes e do Centro Acadêmico XI de Agôsto contras as ditaduras brasileiras do século XX, toda a área ocupada pelo histórico prédio da Faculdade é declarada "território livre", de domínio político daquela comunidade acadêmica, e imune a toda e qualquer ação especialmente por parte do Estado e de suas forças policiais. Por conta disso, afirma-se com segurança que "polícia não entra no Largo", e os episódios nos quais o mito foi reavivado para justificar resistências estudantis a forças policiais são muitos.
Esclareço desde já: defendo o Território Livre, porque defendo amplamente a autonomia universitária, inclusive em relação a seus espaços físicos e especialmente quando estudantes se colocam contra o Estado, sejam quais forem suas manifestações e reivindicações. Se a polícia puder entrar a qualquer momento no espaço da universidade, por qualquer mínima afronta ao status quo, não tardará para que qualquer ação - política ou meramente intelectual - possa ser considerada uma afronta à ordem, e por isso justificadora de intervenção policial. O que quero questionar, contudo, é o alcance real do Território, elemento suscitado pela declaração de ambos os professores, que defenderam sua autonomia tão-somente em relação a ações dos estudantes do Largo São Francisco. Conforme consta de suas declarações na Folha de hoje, o Diretor Rodas fez bem em chamar a polícia para a desocupação, já que não se tratava de um ato dos alunos, mas sim de intrusos, invasores do prédio.
Há, nessas declarações, uma meia verdade e uma idiossincrasia completa. A meia verdade vem do fato de que o ato teve sim apoio do Centro Acadêmico XI de Agôsto, embora amplamente composto por pessoas de fora da Faculdade; afinal, os manifestantes estavam lá justamente para protestar contra a falta de acesso à universidade pública e, além disso, se dependesse da massa desmobilizada e apolítica dos alunos daquela escola, o XI de Agôsto não conseguiria hoje emplacar nenhuma de suas pautas políticas voltadas para o debate nacional - e de esquerda - que não dissesse respeito a demandas internas à Faculdades, questões corporativas dos alunos e realização de eventos culturais (festas, para ser mais direto...).
A idiossincrasia está em limitar as fronteiras políticas do Território Livre - admitindo-se por hipótese que alunos da casa nada têm a ver com o ato - aos estudantes do Largo São Francisco e às suas próprias e exclusivas ações. Em primeiro lugar, porque não faria sentido pensar em uma (re)ação policial dessas proporções a ações de "franciscanos" pautadas exclusivamente em questões internas, que não dissessem respeito ao questões políticas e sociais de maior amplitude. Em segundo lugar porque a posição revelada por aqueles professores expressa na verdade uma crença idealista no papel de vanguarda daquela escola e de seus alunos.
O professor Joaquim Falcão (então da também tradicional escola do Recife) escreveu certa vez que os advogados são os arautos da liberdade, mas também das ditaduras na história do Brasil. Com razão: para ficarmos apenas na história do Largo São Francisco, de lá saíram, de fato, Rui Barbosa, Castro Alves, e os próprio Goffredo e Dalmo; mas também de lá saíram Gama e Silva, Alfredo Buzaid, Hely Lopes Meirelles. O lado positivo do bacharelismo político do Largo São Francisco só pode ser considerado positivo na medida em que afetou movimentos e processos sociais externos à Faculdade, no sentido de promover liberdades, enfrentar ditaduras, defender excluídos - mas só. Fora isso, a crença no bacharelismo reafirma o elitismo daquela escola e um papel supostamente proeminente do direito na organização do mundo e da vida social; nesse sentido, a defesa de fronteiras restritas do Território Livre revela uma visão de mundo segundo a qual demandas sociais só são dignas de gozar de sua proteção se encabeçadas pela vanguarda jurídica "franciscana", ou pior, que demandas e lutas políticas só são legítimas se oriundas daquele arcaico pátio das arcadas.
Talvez minha visão do Território Livre não seja a imagem histórica, hegemônica e consagrada na mitologia e nos rituais de reprodução e transmissão da auto-imagem dos estudantes do Largo São Francisco. Por outro lado, e ainda que sob o risco de cair no erro que aponto, sei que muitos de minha e de outras gerações lutaram para ampliar as fronteiras de liberdade daquele território, trazendo para o centenário pátio atores e grupos sociais alheios ao seu passado e a seu futuro: escravos, comunistas, sem-terras. Defender fronteiras mínimas do Território Livre do Largo São Francisco é hoje uma visão ultrapassada e conservadora, defensora de uma elite que se mostrou e se mostra incapaz, como projeto político, se transformar o país e emancipar seu povo.