A primeira postagem desse blog vem um pouco por acaso. Não seria essa não fossem os acontecimentos dos últimos dias ocorridos no Largo São Fransciso, São Paulo.
Refiro-me muito especialmente à ocupação da Faculdade de Direito da USP por ativistas das Jornadas pela Educação, à ação de desocupação pela Polícia Militar paulista, e particularmente à reação dos professores Dalmo de Abreu Dallari e Goffredo da Silva Telles Júnior aos fatos. Dalmo e Goffredo são dois grandes ícones da história recente da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, e uma referência especialmente para aqueles bacharéis engajados em lutas democráticas e sociais; por isso, e por me incluir entre estudantes engajados do Largo, refiro-me assim a eles, pelo primeiro nome, valendo-me da intimidade que sempre julgamos ter em relação a esses professores.
Goffredo é especialmente reverenciado pela histórica leitura pública da Carta aos Brasileiros no pátio daquela escola, há exatos 30 anos, documento de repúdio ao regime militar articulado por advogados progressitas, seus ex-alunos, e que procuraram o popular mestre para conferir autoridade e legitimidade à ação política que pretendiam.
Dalmo Dallari foi mais popular entre gerações futuras, já na redemocratização do país, quando militou junto à Comissão de Justiça e Paz, vinculou-se ao Partido dos Trabalhadores, foi Secretário de Negócios Jurídicos do governo municipal de Luiza Erundina e Diretor da Faculdade de Direito. Fui aluno de Dalmo anos após esses fatos mas, para a minha geração, ele foi por muito tempo o "eterno candidato" dos estudantes de esquerda para a eleição indireta do Diretor da Faculdade, muitas vezes contra sua vontade, sendo sempre e cada vez mais rara opção dentre os quadros extremamente conservadores que sempre dominaram o magistério da "velha academia".
Pois bem. Na última terça-feira (21 de agosto) manifestantes das Jornadas pela Educação, especialmente ativistas dos Movimentos dos Sem Terra e dos Sem Universidade ocuparam o prédio do Largo São Francisco, uma das tantas manifestações ocorridas no Brasil, tendo inclusive, ao que consta, data e horário certos para a saída do local. Não vou entrar no mérito do movimento e de suas demandas, embora seja inevitável ao final posicionar-me quanto à ação de ocupação, já que o objetivo desse texto é comentar os cometários daqueles professores a ela e à reação da Polícia Militar. Segundo consta do jornal Folha de São Paulo de hoje, os dois professores deram razão à ação da PM, solicitada pelo Diretor da Faculdade, professor João Grandino Rodas. Por trás de ambas as declarações, está um mito muito antigo e reproduzido entre diversas gerações de alunos da Faculdade, o do "Território Livre" do Largo São Francisco.
Segundo esse mito, cujas origens se perdem nas repetidas ações de estudantes e do Centro Acadêmico XI de Agôsto contras as ditaduras brasileiras do século XX, toda a área ocupada pelo histórico prédio da Faculdade é declarada "território livre", de domínio político daquela comunidade acadêmica, e imune a toda e qualquer ação especialmente por parte do Estado e de suas forças policiais. Por conta disso, afirma-se com segurança que "polícia não entra no Largo", e os episódios nos quais o mito foi reavivado para justificar resistências estudantis a forças policiais são muitos.
Esclareço desde já: defendo o Território Livre, porque defendo amplamente a autonomia universitária, inclusive em relação a seus espaços físicos e especialmente quando estudantes se colocam contra o Estado, sejam quais forem suas manifestações e reivindicações. Se a polícia puder entrar a qualquer momento no espaço da universidade, por qualquer mínima afronta ao status quo, não tardará para que qualquer ação - política ou meramente intelectual - possa ser considerada uma afronta à ordem, e por isso justificadora de intervenção policial. O que quero questionar, contudo, é o alcance real do Território, elemento suscitado pela declaração de ambos os professores, que defenderam sua autonomia tão-somente em relação a ações dos estudantes do Largo São Francisco. Conforme consta de suas declarações na Folha de hoje, o Diretor Rodas fez bem em chamar a polícia para a desocupação, já que não se tratava de um ato dos alunos, mas sim de intrusos, invasores do prédio.
Há, nessas declarações, uma meia verdade e uma idiossincrasia completa. A meia verdade vem do fato de que o ato teve sim apoio do Centro Acadêmico XI de Agôsto, embora amplamente composto por pessoas de fora da Faculdade; afinal, os manifestantes estavam lá justamente para protestar contra a falta de acesso à universidade pública e, além disso, se dependesse da massa desmobilizada e apolítica dos alunos daquela escola, o XI de Agôsto não conseguiria hoje emplacar nenhuma de suas pautas políticas voltadas para o debate nacional - e de esquerda - que não dissesse respeito a demandas internas à Faculdades, questões corporativas dos alunos e realização de eventos culturais (festas, para ser mais direto...).
A idiossincrasia está em limitar as fronteiras políticas do Território Livre - admitindo-se por hipótese que alunos da casa nada têm a ver com o ato - aos estudantes do Largo São Francisco e às suas próprias e exclusivas ações. Em primeiro lugar, porque não faria sentido pensar em uma (re)ação policial dessas proporções a ações de "franciscanos" pautadas exclusivamente em questões internas, que não dissessem respeito ao questões políticas e sociais de maior amplitude. Em segundo lugar porque a posição revelada por aqueles professores expressa na verdade uma crença idealista no papel de vanguarda daquela escola e de seus alunos.
O professor Joaquim Falcão (então da também tradicional escola do Recife) escreveu certa vez que os advogados são os arautos da liberdade, mas também das ditaduras na história do Brasil. Com razão: para ficarmos apenas na história do Largo São Francisco, de lá saíram, de fato, Rui Barbosa, Castro Alves, e os próprio Goffredo e Dalmo; mas também de lá saíram Gama e Silva, Alfredo Buzaid, Hely Lopes Meirelles. O lado positivo do bacharelismo político do Largo São Francisco só pode ser considerado positivo na medida em que afetou movimentos e processos sociais externos à Faculdade, no sentido de promover liberdades, enfrentar ditaduras, defender excluídos - mas só. Fora isso, a crença no bacharelismo reafirma o elitismo daquela escola e um papel supostamente proeminente do direito na organização do mundo e da vida social; nesse sentido, a defesa de fronteiras restritas do Território Livre revela uma visão de mundo segundo a qual demandas sociais só são dignas de gozar de sua proteção se encabeçadas pela vanguarda jurídica "franciscana", ou pior, que demandas e lutas políticas só são legítimas se oriundas daquele arcaico pátio das arcadas.
Talvez minha visão do Território Livre não seja a imagem histórica, hegemônica e consagrada na mitologia e nos rituais de reprodução e transmissão da auto-imagem dos estudantes do Largo São Francisco. Por outro lado, e ainda que sob o risco de cair no erro que aponto, sei que muitos de minha e de outras gerações lutaram para ampliar as fronteiras de liberdade daquele território, trazendo para o centenário pátio atores e grupos sociais alheios ao seu passado e a seu futuro: escravos, comunistas, sem-terras. Defender fronteiras mínimas do Território Livre do Largo São Francisco é hoje uma visão ultrapassada e conservadora, defensora de uma elite que se mostrou e se mostra incapaz, como projeto político, se transformar o país e emancipar seu povo.
Refiro-me muito especialmente à ocupação da Faculdade de Direito da USP por ativistas das Jornadas pela Educação, à ação de desocupação pela Polícia Militar paulista, e particularmente à reação dos professores Dalmo de Abreu Dallari e Goffredo da Silva Telles Júnior aos fatos. Dalmo e Goffredo são dois grandes ícones da história recente da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, e uma referência especialmente para aqueles bacharéis engajados em lutas democráticas e sociais; por isso, e por me incluir entre estudantes engajados do Largo, refiro-me assim a eles, pelo primeiro nome, valendo-me da intimidade que sempre julgamos ter em relação a esses professores.
Goffredo é especialmente reverenciado pela histórica leitura pública da Carta aos Brasileiros no pátio daquela escola, há exatos 30 anos, documento de repúdio ao regime militar articulado por advogados progressitas, seus ex-alunos, e que procuraram o popular mestre para conferir autoridade e legitimidade à ação política que pretendiam.
Dalmo Dallari foi mais popular entre gerações futuras, já na redemocratização do país, quando militou junto à Comissão de Justiça e Paz, vinculou-se ao Partido dos Trabalhadores, foi Secretário de Negócios Jurídicos do governo municipal de Luiza Erundina e Diretor da Faculdade de Direito. Fui aluno de Dalmo anos após esses fatos mas, para a minha geração, ele foi por muito tempo o "eterno candidato" dos estudantes de esquerda para a eleição indireta do Diretor da Faculdade, muitas vezes contra sua vontade, sendo sempre e cada vez mais rara opção dentre os quadros extremamente conservadores que sempre dominaram o magistério da "velha academia".
Pois bem. Na última terça-feira (21 de agosto) manifestantes das Jornadas pela Educação, especialmente ativistas dos Movimentos dos Sem Terra e dos Sem Universidade ocuparam o prédio do Largo São Francisco, uma das tantas manifestações ocorridas no Brasil, tendo inclusive, ao que consta, data e horário certos para a saída do local. Não vou entrar no mérito do movimento e de suas demandas, embora seja inevitável ao final posicionar-me quanto à ação de ocupação, já que o objetivo desse texto é comentar os cometários daqueles professores a ela e à reação da Polícia Militar. Segundo consta do jornal Folha de São Paulo de hoje, os dois professores deram razão à ação da PM, solicitada pelo Diretor da Faculdade, professor João Grandino Rodas. Por trás de ambas as declarações, está um mito muito antigo e reproduzido entre diversas gerações de alunos da Faculdade, o do "Território Livre" do Largo São Francisco.
Segundo esse mito, cujas origens se perdem nas repetidas ações de estudantes e do Centro Acadêmico XI de Agôsto contras as ditaduras brasileiras do século XX, toda a área ocupada pelo histórico prédio da Faculdade é declarada "território livre", de domínio político daquela comunidade acadêmica, e imune a toda e qualquer ação especialmente por parte do Estado e de suas forças policiais. Por conta disso, afirma-se com segurança que "polícia não entra no Largo", e os episódios nos quais o mito foi reavivado para justificar resistências estudantis a forças policiais são muitos.
Esclareço desde já: defendo o Território Livre, porque defendo amplamente a autonomia universitária, inclusive em relação a seus espaços físicos e especialmente quando estudantes se colocam contra o Estado, sejam quais forem suas manifestações e reivindicações. Se a polícia puder entrar a qualquer momento no espaço da universidade, por qualquer mínima afronta ao status quo, não tardará para que qualquer ação - política ou meramente intelectual - possa ser considerada uma afronta à ordem, e por isso justificadora de intervenção policial. O que quero questionar, contudo, é o alcance real do Território, elemento suscitado pela declaração de ambos os professores, que defenderam sua autonomia tão-somente em relação a ações dos estudantes do Largo São Francisco. Conforme consta de suas declarações na Folha de hoje, o Diretor Rodas fez bem em chamar a polícia para a desocupação, já que não se tratava de um ato dos alunos, mas sim de intrusos, invasores do prédio.
Há, nessas declarações, uma meia verdade e uma idiossincrasia completa. A meia verdade vem do fato de que o ato teve sim apoio do Centro Acadêmico XI de Agôsto, embora amplamente composto por pessoas de fora da Faculdade; afinal, os manifestantes estavam lá justamente para protestar contra a falta de acesso à universidade pública e, além disso, se dependesse da massa desmobilizada e apolítica dos alunos daquela escola, o XI de Agôsto não conseguiria hoje emplacar nenhuma de suas pautas políticas voltadas para o debate nacional - e de esquerda - que não dissesse respeito a demandas internas à Faculdades, questões corporativas dos alunos e realização de eventos culturais (festas, para ser mais direto...).
A idiossincrasia está em limitar as fronteiras políticas do Território Livre - admitindo-se por hipótese que alunos da casa nada têm a ver com o ato - aos estudantes do Largo São Francisco e às suas próprias e exclusivas ações. Em primeiro lugar, porque não faria sentido pensar em uma (re)ação policial dessas proporções a ações de "franciscanos" pautadas exclusivamente em questões internas, que não dissessem respeito ao questões políticas e sociais de maior amplitude. Em segundo lugar porque a posição revelada por aqueles professores expressa na verdade uma crença idealista no papel de vanguarda daquela escola e de seus alunos.
O professor Joaquim Falcão (então da também tradicional escola do Recife) escreveu certa vez que os advogados são os arautos da liberdade, mas também das ditaduras na história do Brasil. Com razão: para ficarmos apenas na história do Largo São Francisco, de lá saíram, de fato, Rui Barbosa, Castro Alves, e os próprio Goffredo e Dalmo; mas também de lá saíram Gama e Silva, Alfredo Buzaid, Hely Lopes Meirelles. O lado positivo do bacharelismo político do Largo São Francisco só pode ser considerado positivo na medida em que afetou movimentos e processos sociais externos à Faculdade, no sentido de promover liberdades, enfrentar ditaduras, defender excluídos - mas só. Fora isso, a crença no bacharelismo reafirma o elitismo daquela escola e um papel supostamente proeminente do direito na organização do mundo e da vida social; nesse sentido, a defesa de fronteiras restritas do Território Livre revela uma visão de mundo segundo a qual demandas sociais só são dignas de gozar de sua proteção se encabeçadas pela vanguarda jurídica "franciscana", ou pior, que demandas e lutas políticas só são legítimas se oriundas daquele arcaico pátio das arcadas.
Talvez minha visão do Território Livre não seja a imagem histórica, hegemônica e consagrada na mitologia e nos rituais de reprodução e transmissão da auto-imagem dos estudantes do Largo São Francisco. Por outro lado, e ainda que sob o risco de cair no erro que aponto, sei que muitos de minha e de outras gerações lutaram para ampliar as fronteiras de liberdade daquele território, trazendo para o centenário pátio atores e grupos sociais alheios ao seu passado e a seu futuro: escravos, comunistas, sem-terras. Defender fronteiras mínimas do Território Livre do Largo São Francisco é hoje uma visão ultrapassada e conservadora, defensora de uma elite que se mostrou e se mostra incapaz, como projeto político, se transformar o país e emancipar seu povo.
Um comentário:
Saindo um pouco das questões relacionadas ao direito, à advocacia e às ciências judíricas como um todo, o meu comentário segue mais no sentido da questão da autonomia universitária e de toda a política nefasta que se vem travando contra a Universidade Pública. Seria absurdo falar desse tema sem mencionar o absurdo que vem sendo esses longos anos da dinastia tucana no governo do Estado de São Paulo. Mário Covas, Alckimin e agora José Serra esmagaram nestes últimos anos, pouco a pouco, o que ainda restava de autonomia das Universidades Públicas Paulistas. Não me refiro apenas à autonomia financeira, mas principalmente à autonomia política. Dentro desse quadro, em janeiro deste ano o recém empossado governador Serra impõe às Universidades uma série de decretos, que apenas pelo fato de serem DECRETOS já são abusivos e autoritários. Mas estes decretos tinham em sua essência a função de colocar uma ponto final na autonomia universitária. O debate sobre esse assunto é longo e já foi amplamente divulgado principalmente após as diversas ações do movimento estudantil do estado de São Paulo com as Ocupações de reitorias, diretorias acadêmicas, manifestações e greves. E foi neste momento de crise (no melhor sentido que essa palavra pode carregar) que percebemos que tínhamos perdido de fato a autonomia. A ação policial no Largo de São Franscisco foi um exemplo claro disso, mas não foi o primeiro este ano. Em maio, quase uma centena de policiais militares, alguns da famosa Tropa de Choque, invadiram o prédio da Diretoria da Unesp de Araraquara e levaram detidos centenas de estudantes. Além disso, as ameaças do Governo do Estado em conjunto com a Reitoria da USP impuseram o terror como forma de "negociação" durante a ocupação do prédio da reitoria da USP. As madrugadas naqueles prédio eram tensas quando o boato de que o Choque viria em breve para retirar os estudantes e funcionários de lá. E assim tem sido frequente ver viaturas da Força Tática da Polícia Militar rondando o campus da Unicamp em tranqüilas manhãs de segunda-feira. E muitos casos, o "Tático Cinza" vem recheado de policiais fortemente armados. Armados pra que? Os estudantes, até onde eu sei, não costumam portar armas em suas aulas, pesquisas. Usamos livros, que apesar de pesados, não costumam machucar muita gente.
Um passo em falso pode ser perigoso para quem freqüenta as Universidades Públicas brasileiras. Se você estiver no lugar errado e na hora errada pode acabar numa delegacia.
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