sexta-feira, 24 de setembro de 2010

O lado esquerdo do andar de cima

Pelo que foi noticiado essa semana, juristas paulistas de renome realizaram, no dia 22 de setembro último, ato e manifesto de repúdio à "marcha rumo ao autoritarismo" e de "defesa da democracia", realizado no tradicional Largo de São Francisco, em São Paulo, no parlatório da não menos tradicional Faculdade de Direito da USP. O alvo do ato era o presidente Lula e suas críticas recentes à imprensa, interpretadas pelos autores do ato como ameaças à democracia e à liberdade. Embora o ato e o manifesto divulgado naquele dia tenha tido a participação de outros intelectauis de outras áreas - com destaque para professores da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP - a presença dos juristas foi a mais destacada pela imprensa. Isso porque, acredito, eu, por razões históricas e filosóficas, a imagem dos juristas, em geral, está associada à liberdade e à justiça, e a lutas políticas em defesa desses valores.
 
Mas é preciso perguntar: quem são os juristas que participaram do ato? Os nomes mais citados e destacados da turma, conforme noticiado por Estadão e Folha, são Hélio Bicudo, Miguel Reale, José Gregori e José Carlos Dias. Todas essas figuras são prestigiadas e reconhecidas no mundo jurídico, especialmente no "mundinho" jurídico paulista - que tem, muitas vezes, a pretensão de ser todo o campo jurídico brasileiro. Todos eles atuaram, em algum momento e de alguma forma, contra a ditadura militar e pelos direitos humanos. Isso tudo foi lembrado pelas reportagens do Estadão e da Folha. O Estadão, da quatrocentona família Mesquita, toda ela cunhada ideologicamente no mais "puro" liberalismo da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, fez menção, inclusive, à presença de boa parte desses mesmos juristas em outro ato, no mesmo local, supostamente com os mesmo objetivos, e que ficou famoso na história política brasileira: a leitura da Carta aos Brasileiros, pelo professor emérito daquela mesma Faculdade, Goffredo da Telles Júnior, no ano de 1977.
 
O que não está em nenhuma das reportagens, da Folha ou do Estadão, é: quem são, realmente, esses juristas, além de "notáveis" especialistas em leis (sentido comum da expressão "juristas"). O que eles representam, social e politicamente?
 
Bicudo, Gregori, Dias e Reale Júnior são representantes típicos das elites jurídicas (e, em grande parte, da elite brasileira em geral): todos eles formados por faculdade tradicional (no caso, todos pela "São Francisco"), brancos, homens, com trajetórias de sucesso em profissões que dão muito prestígio aos seus membros (a advocacia criminal e o Ministério Público paulistas), e com passagens, em algum momento, pela política "tradicional" (como secretários e ministros de governo, parlamentares e lideranças partidárias). Também possuem outra característica comum, que os aproximou em determinado momento político, e que explica muito de suas convicções e de suas posições políticas: católicos mais ou menos praticantes, formaram o grupo de juristas organizados em torno de D. Paulo Evaristo Arns e da Comissão de Justiça e Paz para a denúncia do regime militar e a defesa de presos políticos. Daí estarem acompanhado, no ato dessa semana, por Henry Sobel o ex-todo poderoso líder da Congregação Israelita Paulista, e parceiro desses juristas e de D. Paulo nas lutas do fim da ditadura. O próprio D. Paulo assinou o manifesto, embora com algumas ressalvas.
 
Todos eles também tiveram, ainda estudantes, algum grau de envolvimento com a política estudantil - fator presente em muitas das trajetórias de membros das elites jurídicas, treinadas nas disputas por Centros Acadêmicos para as contendas "de gente grande" da política "de verdade" (no caso desses juristas, serviu-lhes de centro de treinamento o centenário Centro Acadêmico XI de Agosto, que também formou figuras como Ulisses Guimarães, Jânio Quadros, vários ministros do Supremo e o atual ministro da Educação Fernando Haddad). Por fim, pelo menos no caso de Dias e de Reale Jr., há outra característica que os aproxima de parte considerável das elites jurídicas: o pertencimento a "dinastias" de presítigio no mundo do direito. Dias é de tradicional família de advogados, e seu pai foi desembargador do Tribunal de Justiça de Sâo Paulo. Reale Jr., como o nome diz, é filho de Miguel Reale, ícone do pensamento jurídico nacional, com atuação política e acadêmica de destaque - foi, entre outras coisas, um dos líderes máximos do Integralismo, ao lado de Plínio Salgado e Gustavo Barroso, dirigente do Departamento de Administração do Serviço Público local (o "daspinho" paulista) no Estado Novo e reitor da USP.
 
E por que só a trajetória de Hélio Bicudo foi destacada nas reportagens sobre o ato? A Folha chegou mesmo a dizer que a leitura do manifesto por Bicudo foi o momento mais importante do ato. Porque Bicudo é fundador e dissidente do PT, e por isso encarna com perfeição a figura do descontente, do fundador do Partido que ousa desafiar Lula, seu líder máximo, em defesa dos princípios e contra o desvirtuamento da sigla e do presidente da República. Mais do que Helóisas Helenas, Zé Marias e Lucianas Genros, Bicudo tem ao seu lado a idade e a trajetória pessoal e profissional (foi ministro de Jango e o promotor responsável pela investigação do Esquadrão da Morte do delegado Fleury, no fim da ditadura), que o colocam além e acima da própria história do PT e de Lula. Por essa razão sua participação no ato foi tão destacada pela imprensa, com a finalidade de dar maior legitimidade ao ato e ao manifesto. Não se trata de qualquer dissidente petista. Também não se trata de qualquer jurista. É um jurista ex-petista, e um ex-petista jurista.
 
O que Estadão e Folha não escreveram - ou melhor, não escreveram com todas as letras - foi que Dias, Gregori e Reale Jr. são ligados ao PSDB, em maior ou menor grau. Todos eles foram Ministros da Justiça de FHC (o Estadão até menciona o cargo, mas não o governo) e secretários do governo Montorno (do então PMDB, mas do grupo que daria origem ao PSDB); Reale Jr. foi inclusive vice-presidente do Partido e suplente de Serra no Senado; Gregori foi deputado estadual e ainda ocupa cargo na gestão Kassab, à frente da Secretaria Especial e da Comissão Municipal de Direitos Humanos da Prefeitura de São Paulo. Na cobertura da imprensa sobre o ato, o Estadão chega até a mencionar a participação de "partidos de oposição" no movimento, citando expressamente apenas a presença de Roberto Freire, do PPS. Já o jornal O Globo reproduz a posição dos líderes da articulação no sentido de que o movimento é "apartidário". A Folha, focada apenas nos juristas, não cita nada relacionado a partidos.
 
A vinculação partidária tira o direito de que eles se manifestem? De forma alguma. Mas, por essas circunstâncias e características de seus organizadores, esse ato não pode deixar de ser lido como parte da campanha eleitoral, e de um embate político maior, no qual as pessoas e as partes têm lados e posições muito bem definidas. Divulgá-lo como um manifesto sincero de notáveis juristas acima de qualquer interesse que não a liberdade e a justiça, contra uma suposta ameaça de fato à democracia é inocência que eu não acredito que caracterize jornalões como Folha e Estadão. Dias, Bicudo, Gregori e Reale Jr podem sim, por suas trajetórias, serem considerados homens "de esquerda" - mas uma esquerda de elite, ou melhor, a esquerda da elite paulista, em disputa ideológica com a elite da esquerda, uma contra-elite de sindicalistas, funcionários públicos e intelectuais de classe média, social e geograficamente mais heterogênea, que chegou ao poder do Estado com a eleição de Lula, um operário nordestino e sem diploma, em 2002.
 
Contra essa nova elite, a esquerda da elite paulista, embora fale em nome da democracia e contra o autoritarismo, legitimados por suas trajetórias de luta contra a ditadura militar e pelos direitos humanos, é tão elite quanto a direita da elite, representada pelo raivoso DEM e por dinastias políticas como as dos Magalhães, na Bahia, e dos Bornhausen, em Santa Catarina. Para tomar um exemplo mais próximo das trajetórias dos líderes do ato dessa semana, esses juristas católicos de esquerda em muito pouco se diferenciam (a não ser pelo direcionamento pontual que dão à política e à doutrina católica) de outros juristas católicos da elite paulista, como Ives Gandra da Silva Martins e José Renato Nallini, ambos vinculados à Opus Dei. Não à toa, a esquerda da elite paulista, representada pela social-democracia tucana, e a direita da elite nacional, representada pelos prolongamentos da ARENA no PFL e no DEM, formaram uma bem sucedida aliança política de sustentação dos governos FHC, Alckmin, Serra e Kassab nos planos nacional e estadual. A par de qualquer contradição aparente entre seus projetos, eles são o que são: elites.
 
Por fim, apenas reitero uma observação que já fiz neste blog, sobre a suposta ameaça que Lula e o PT representam à democracia e à liberdade de imprensa. Comparar Lula a Chávez é uma bobagem sem tamanho (não vou nem entrar no mérito das comparações que os juristas do ato fizeram com Mussolini, porque aí já é demais...). Isso porque, como também acusam os mesmos críticos da suposta ameaça à liberdade, Lula optou por alianças com outra parte da elite de direita (Sarney, Collor, Renan Calheiros, etc), que já foi aliada de tucanos e DEM. Por ter feito essa aliança que muitos, inclusive eu, criticamos, é que Lula e o PT não precisaram atropelar a oposição e mudar o quadro constitucional para implementar seu projeto popular. Chávez, ao contrário, partiu para a estratégia plebiscitária de mobilização popular justamente para não ter que se aliar aos grupos dominantes da Venezuela. Evo Morales, num meio termo que não foi necessário a Chávez por vacilo da própria oposição venezuelana, teve que recuar de sua estratégia de mobilização predominantemente popular para chegar a alguma solução de compromisso com as elites tradicionais que ameaçavam jogar a Bolívia numa guerra fraticida.
 
Embora não o queiram ver seus críticos da elite brasileira, de esquerda ou de direita, a opção de Lula e do PT, ao se aliarem a velhas elites da política sem perder a essência de seu projeto modernizador de matiz popular, foi a de preservar, ao final, as regras do jogo democrático definido pelo pacto centrista da Constituição de 1988, ainda que sob o bombardeio de uma imprensa que, em nenhum momento, sofreu censura administrativa, teve suas empresas confiscadas ou seus proprietários presos pelo governo. Tanto é assim, que falam o que falam, da maneira como querem (inclusive quando deixam de falar o que poderiam ou deveriam) sem qualquer risco ao seu pleno funcionamento. No mais, se o enorme apoio popular de Lula e a expressiva votação que deve ter Dilma Rousseff nas eleições de outubro não são parte da democracia, essa elite esqueceu (ou nunca soube) o que é povo.

9 comentários:

Anônimo disse...

Ótimo sua posição, aonde vai parar essa nossa Democracia tão "suada" ?
Acredito eu que de volta aos livros de histórias!

Anônimo disse...

" ÓTIMA POSIÇÃO" , só para eu corrigir meu comentário!

Frederico de Almeida disse...

Caro Anônimo, obrigado pelo comentário.

Unknown disse...
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Paulo André Nassar disse...

Caro Fred,

Tens como doar um exemplar da tua tese pra biblioteca da DireitoGV?

abs,
PA

Alice G. disse...

Gostei muito do post, de verdade. Informativo e instigante, no bom sentido do termo. No entanto, me intrigaram negativamente duas coisas: i) a maneira como a palavra elite (e elites) é usada de forma reiterada e sempre com indisfarçado sentido pejorativo. Que significa isso? Uma pré-compreensão de que as elites são sempre antidemocráticas? Uma ideia fixa de que elites desfrutam de privilégios e são conservadoras? ii)Se para compreender alcance e o significado do manifesto é preciso conhecer a biografia e o pedigree político dos subscritores, a mesma lógica vale para entender as posições e estudos do autor do blog. O "quem sou eu" do não esclarece - dá a entender que é um blog apartidário. É mesmo?

Alice G. disse...

Uma olhada no twitter me esclareceu bem. Nessas horas mais emotivas ninguém fica sóbrio. Entendi de onde vem a fixação semântica com "as elites" :)

Frederico de Almeida disse...

Caro Paulo André,

Certamente, deixarei um exemplar da tese na biblioteca da GV em breve. Por enquanto, você pode acessá-la pelo link que está na barra lateral do blog.

Obrigado!
Abraço
Fred

Frederico de Almeida disse...

Cara Alice G.,

Obrigado por seu comentário.

O uso que faço do termo "elites", apesar de não se tratar de um texto acadêmico, é o da sociologia das elites, da sociologia política, mas que acabou ficando desgastado pelo uso vulgar e politizado do termo. Vejo as elites como um fenômeno comum a todas as grandes organizações; dizer que é um fenômeno "natural" é muito pouco "científico", mas não conheço grandes organizações ou agrupamentos nos quais uma forma de distribuição efetivamente horizontal do poder tenha ocorrido.

Por isso, o uso que faço no meu texto não é necessariamente negativo, talvez um pouco "denuncista", pois o objetivo era indicar aquilo que os jornais não mostraram. Por fim, a "fixação" com o termo "elites" vem de minha dedicação ao tema nos últimos quatro anos, ao longo dos quais desenvolvi minha tese de doutorado (que você pode acessar, assim como outros trabalhos meus, nos links da barra lateral do blog).

Por fim, quanto ao "quem sou eu" e às minhas posições: em nenhum momento deixo a entender que sou "apartidário" (embora não seja filiado a partido), ou busco me esconder da possibilidade de alguém analisar minha trajetória e apontar minhas próprias vinculações sociais e ideológicas. Tenho ciência de todas elas e não as nego; além disso, uma lida no meu perfil e no meu currículo Lattes vai demonstrar rapidamente minha vinculação ao PT (apesar de não ser filiado, nem eleitor exclusivo, pois voto em outros partidos de esquerda, trabalhei no governo Lula) e minha preferência por temas "de esquerda" (acesso à justiça, reforma agrária, direitos humanos, etc.).

Um abraço,
F.