Desde pelo menos a última semana de 2009 vem se falando, com um tanto de rumor e ruído, sobre um tal decreto, assinado pelo Lula, que revogaria a Lei de Anistia. Nessa semana - mais especificamente, ontem - a imprensa preguiçosa e mal-informada descubriu que o tal Decreto nº 7.037/2009, na verdade instituía o III Plano Nacional de Direitos Humanos (PNDH). As reações da intelligentsia conservadora foram rápidas, intensas e - como é típico de quem, dominando os meios de comunicação, não se preocupa demais em comprovar ou fundamentar suas opiniões - rasas e mal-intencionadas.
Tomo por base três manifestações públicas do pensamento conservador atual no Brasil, todas datadas de ontem, todas na mesma linha - embora com variações na honestidade e na sofisticação intelectual: o artigo de Demétrio Magnoli no Estadão; o artigo de Reinaldo Azevedo no site da revista Veja; e a fala editorial de Willian Waack na abertura do televisivo Jornal da Globo, seguida de reportagem sobre o III PNDH.
Verdade e democracia
O artigo de Demétrio Magnoli tocou no ponto central da polêmica do III PNDH, e que já vinha sendo mencionada desde as festas de final de ano: a instituição de uma Comissão da Verdade, para esclarecer fatos ocorridos no contexto da repressão política de Estado, durante nossa última ditadura militar. Discordo de muitos pontos da análise de Magnoli, desde a desqualificação do interlocutor (Frei Betto) até sua posição clara contra a finalidade da Comissão. Discordo, principalmente, de sua afirmação de que ditaduras mais ou menos totalitárias produzem verdades oficiais, mas democracias não possuem "verdades de Estado". Bobagem: todo poder produz verdades legitimadas, e a narrativa histórica - ainda mais quando oficializada, mesmo na política de um regime democrático - supõe sempre uma relação de poder entre quem conta a história e quem ficou de fora dela (ou figura em posição secundária). Provavelmente Magnoli, que ora se apresenta como geógrafo, ora como sociólogo, sabe disso - mas a ressalva, em seu texto, de que a democracia "em tese" não produz verdades de Estado deixa claro que sua afirmação se baseia mais em uma certa visão normativa da democracia do que na realidade do poder nesse tipo de regime. Por outro lado, tendo a reconhecer a lucidez e (comparando a sua com as próximas manifestações que analisarei) a isenção passional de Magnoli ao identificar um conflito na coalizão de poder que circunda o governo Lula, e a possibilidade de que essa correlação de forças - que inclui agentes da resistência e do suporte à ditadura militar - possa bloquear as tentativas de esclarecimento histórico por parte dos setores mais progressistas e associados à resistência à ditadura e aos movimentos de direitos humanos. Reconheço também a clareza do analista sobre o status da Lei de Anistia no nosso processo de transição - diferente de outros analistas mais apressados e não tão honestos intelectualmente, que transformam o estatuto jurídico da vigência da Lei de Anistia em argumento de fato e político para impedir qualquer discussão sobre o passado recente e afirmar a ilegalidade de quem quer prosseguir com um debate que (eu e Magnoli concordamos) não acabou e não está resolvido.
Constitucionalismo fajuto e ignorância
O segundo artigo que gostaria de comentar é o de Reinaldo Azevedo, que no tom raivoso que denuncia o direitista paranóico, e sem a sofisticação e a honestidade intelectual aparentes de Magnoli (de quem, repito, discordo na maior parte dos temas, mas ao menos sabe argumentar e se esforça em fundamentar suas opiniões), teceu um rosário de bobagens sobre a adequação constitucional do decreto que instituiu o III PNDH. Não vou perder tempo entrando no argumento "constitucional" de Azevedo, que é profundo como um pires; além disso, meu amigo blogueiro Raphael Neves já se encarregou de esculhambar, com a maestria de sempre, o "Curço de Direito Constitucional para Idiotas", de Reinaldo Azevedo (veja em seu blog). Mas devo dizer algo sobe seus argumentos substantivos que, ainda que igualmente rasos, enviesados e mal-informados (mal-intencionados?), têm pautado a reação conservadora ao III PNDH nos últimos dias.
Em primeiro lugar, Reinaldo Azevedo faz uma comparação histórica que não procede: diz que o III PNDH é um golpe branco, para a instauração do "Estado Novo lulista", tão sutil e juridicamente artificioso quanto a decretação do Ato Institucional nº 5 - conhecido como "o golpe dentro do golpe", ou o momento em que a ditadura se institucionalizou a se radicalizou, quatro anos após o golpe de 1964. O argumento é tão grosseiro que nem mereceria contra-argumentação, mas como esse tipo de besteira se espalha rápido pela consciência conservadora supostamente esclarecida, é preciso lembrar: o III PNDH foi elaborado com base em conferência locais, regionais e nacional, com convocação aberta e ampla participação social, enquanto o AI-5 foi elaborado pela inteligência jurídica a serviço da ditadura e decidido em um convescote de dirigentes que não haviam recebido um voto sequer da população (isso para não mencionar a histórica frase de Jarbas Passarinho, outro que perambula por aí até hoje defendendo as barbaridades de seu regime, naquele convescote: "Às favas, senhor presidente, com os escrúpulos de consciência!").
Outro ponto que Azevedo ataca é a proposta de revogação de todo o entulho legislativo do período autoritário, compreendido entre 1964 e 1985, e que seja contrário aos direitos humanos. A leitura afobada (mal-intencionada?) do texto do III PNDH (em trechos transcritos pelo próprio autor, basta ver seu artigo no site da Veja) deixa claro que o que o Plano propõe é a criação de um grupo de trabalho, que deverá analisar a legislação e propor as mudanças, que por sua vez serão analisadas e deliberadas pelo Congresso Nacional. Se, até onde me lembro, é esse o trâmite legislativo regular em uma democracia, pergunto: onde está o golpe, Reinaldo Azevedo?
Nesse embalo, Azevedo ataca principalmente a proposta do III PNDH de constituir Comissão da Verdade, a fim de apurar e esclarecer fatos ocorridos no contexto da represssão política de Estado, no período da ditadura militar. Nesse ponto Azevedo repete a confusão (mal-intencionada?) que está pautando esse debate desde que a notícia apareceu nos jornais às vésperas do Natal: o de que a mera existência da Comissão contraria a Lei de Anistia. Além do que escrevi acima sobre a busca da verdade sobre a repressão política de Estado pratica pela ditadura militar, gostaria de acrescentar apenas uma coisa: verdade não se confunde com punição. Busca da verdade tem a ver com esclarecimento de nosso passado histórico, com o direito à memória das vítimas da repressão e o de suas famílias em saber o destino de seus entes mortos ou desaparecidos; tem a ver também com justiça e responsabilidade política do Estado; tem a ver, por fim, com a própria pacificação política de nossa transição ainda incompleta - e o fato de que a discussão sobre anistia e verdade ainda é pauta e não se resolve é sinal mais que evidente que nossa transição é incompleta, apesar dos avanaços institucionais. Verdade não trará necessariamente punição dos responsáveis, embora seja meio caminho para isso. Os defensores da Comissão sabem disso, e por isso propuseram a discussão da verdade separada de qualquer proposta de revisão da Lei de Anistia. Pessoalmente, sou favorável aos dois encaminhamentos, mas sei que o tempo e a melhor oportunidade política de se discutir a anistia já passou, ficou na abertura e na volta das lideranças políticas exiladas. Se a verdade gerar condições para uma futura discussão sobre a Lei de Anistia, com a possibilidade de sua revogação, tanto melhor; se não, será mais uma limitação, compreensível, de nosso processo político de transição, mas certamente seremos um país e uma comunidade política mais civilizada.
Outra ignorância (mal-intencionada?) de Azevedo diz respeito à sua opinião sobre as medidas de acesso à justiça no campo e nas cidades propostas pelo III PNDH. A violência decorrente de conflitos agrários e territoriais urbanos é uma das feridas abertas dos direitos humanos no Brasil, e responsável, ao lado da questão penitenciária, da infância e da violência policial, pela péssima imagem do país no exterior e por algumas condenações em organismos internacionais. Por mais que ruralistas e conservadores como Azevedo pensem e desejem que a solução se dê pelo uso rigoroso da legislação penal e do aparato de segurança, são justamente esses fatores que estão por trás do problema. Operadores da justiça diretamente atuantes nesse tipo de conflito, com um mínimo de lucidez sobre seu próprio trabalho, e de todos os matizes ideológicos, admitem esse problema, e muitos buscam praticar o tipo de solução de conflitos proposta pelo III PNDH: mediação e negociação coletiva. A diferença é que o III PNDH busca institucionalizar esse tipo de procedimento, incorporando-os aos ritos processuais já existentes para reintegração de posse e processamento de ações possessórias. Nesse sentido, o III PNDH é plenamente integrado a um amplo processo de informalização e racionalização da legislação processual, no mundo todo, e também no Brasil: os Juizados Especiais Cíveis, Criminais e Federais, audiências prévias de conciliação, as campanhas do Conselho Nacional de Justiça pela conciliação, e a arbitragem comercial tão usada por empresas e governos já fazem parte das práticas da administração da justiça brasileira desde pelo menos os anos 80, e são cada vez mais incensadas pelos especialistas e juristas. Por que não nos conflitos territoriais? Mais uma bobagem de Azevedo dizer que tal tipo de medida exclui o Poder Judiciário da resolução do problema.
E mesmo quando o III PNDH aposta em formas não-estatais de mediação (e nessa expressão podemos incluir tanto a festejada arbitragem comercial quanto a mediação comunitária, proposta no Plano), nada mais está fazendo do que fortalecer práticas que já vêm sendo adotadas na reforma da justiça há muito tempo - e para quem conhece o programa Centros de Integração da Cidadania, do governo de São Paulo, paradigma desse tipo de experiência no Brasil, sabe que ele é em grande parte obra da inteligência jurídica tucana, e não de comunistas interessados na implantação de "sovietes", como sugerido pelo delirante Azevedo.
Por fim - e para não gastar tanto verbo contra argumentos tão superficiais (mal-intencionados?) - exploro apenas mais uma das fracas razões de Azevedo contra o III PNDH: chamar de "mentira cretina" o diagnóstico de conflito entre modos de produção agrícola diversos, representados pela agronegócio e pela pequena agricultura familiar. Em primeiro lugar, são sim modelos concorrentes, embora possam conviver, até certo ponto, harmonicamente - e isso nenhum defensor de direitos humanos envolvidos com a elaboração do III PNDH vai negar, até mesmo por ser essa a matriz agrícola estimulada pelas medidas de governo. O que o III PNDH acusa é o rsico de supressão de um modelo por outro, e os possíveis impactos para o meio ambiente, a produção de alimentos e a concentração de riquezas. São dados, e não "sociologia de botequim" (como esperneia Azevedo): a agricultura familiar representa mais de 80% dos estabelecimentos rurais (embora ocupe menos de 30% da área rural) e é a principal responsável pelo fornecimento de alimentos para o mercado interno brasileiro. Por outro lado, também são dados (e não "sociologia de botequim") que demonstram o impacto ambiental negativo da soja e da pecuária - atividades econômicas centrais do agronegócio brasileiro. Se Azevedo quer brigar com as pesquisas, deve enfrentar sua metodologia e seus dados, e não simplesmente desqualificar a sociologia. O que não dá para negar (a não ser em casos extremos de alienação paranóica) é o fato de que produção de alimentos e mudanças climáticas são temas urgentes e que pautarão as grandes questões mundiais no futuro próximo - não são, como sugere Azevedo, "samba do esquerdista doido".
Bad news (mau jornalismo)
Que o texto de Azevedo repercutisse positivamente entre os leitores da Veja que têm nele e em Diogo Mainardi seus oráculos (que lhes revelam o que eles na verdade já pensam), tudo bem. Que a Senadora Katia Abreu, do DEM, presidente da Confederação Nacional da Agricultura, e que de vez em quando relativiza o que é trabalho escravo, saia divulgando o texto do Azevedo como artigo científico ou verdade revelada, soa pior para uma parlamentar com assessores certamente melhor qualificados do que o articulista da Veja - mas tudo bem, também. Mas a coisa vai ficando séria quando a Rede Globo, com toda a sua abrangência e influência, compra os argumentos rasos de Azevedo e os divulga de forma rápida e televisiva - não há sequer o texto ali, sempre pronto à releitura e à relfexão, só a força da imagem e da palavra.
Na noite de ontem, o âncora Willian Waack leu editorial contrário ao III PNDH na abertura do Jornal da Globo, repetindo basicamente os mesmos argumentos expostos por Azevedo: ameaça à propriedade privada, ao Judiciário, à liberdade de imprensa, etc, etc. Editoriais são assim: demonstram a opinião do veículo de imprensa, em geral vêm antes do noticiário "meramente" informativo e, quando o veículo é minimamente sério, qualquer leitor/telespectador percebe a passagem de um para outro. Até esse ponto, tudo ok com o Jornal da Globo de ontem - quer dizer, mais ou menos, pois a fala de Waack terminou com a pergunta assustada e dramatizada: "E quem ira NOS proteger?" Quando passou-se para a reportagem sobre o III PNDH, veio exemplo de péssimo jornalismo, já anunciado pelo clima de terror sugerido pela fala de olhos arregalados de Waack: diversos depoimentos de Kátia Abreu (anunciada como presidente da CNA, mas não senadora da oposição, informação visível apenas na breve legenda abaixo de sua imagem), de empresários, representantes do setor de mídia, etc. Se a Globo editasse fala de Carlos Lacerda antes do golpe de 64, acusando Jango de ameaçar a propriedade privada, os direitos individuais, de implementar uma república sindical, etc, o Jornal não precisava nem se dar o trabalho de coletar depoimentos - dava na mesma. Por outro lado, NENHUM depoimento de militante, político petista ou representante do governo na reportagem, apenas a menção (nem ao menos leitura ou divulgação de conteúdo) a uma nota da Secretaria Nacional de Direitos Humanos defendendo o Plano. Por mais que o clima interno no governo esteja tenso, por conta da polêmica criada, eu sinceramente DUVIDO que não houvesse um, PELO MENOS UM, militante de direitos humanos, político petista, acadêmico ou técnico da Secretaria de Direitos Humanos disposto a defender o III PNDH na TV! Bad news, compatriotas...
Qual democracia?
As reações que analisei acima demonstram a incompreensão quanto à centralidade dos direitos humanos para a civilidade de nossa vida social e política (aliás, nem mencionei antes, mas é sempre bom lembrar: a preemência dos direitos humanos também é mandamento constitucional, mas isso o "constitucionalista" Reinaldo Azevedo não disse...). O teor das divergências demonstram, ainda, que os conflitos mal acomodados ao longo do processo de transição política estão latentes e querendo se intensificar. Ótimo, democracia boa é a que expõe e encaminha o conflito - não a que o bloqueia por argumentos formalistas ("a Lei de Anistia foi o ponto final", "revisões geram insegurança jurídica") ou de pânico (estes, bem exemplificados pela histeria de Reinaldo Azevedo e pela dramaticidade do editorial lido por Willian Waack). A questão é: como tratamos nossos conflitos (individuais, coletivos, agrários, urbanos, políticos, partidários)?
A agressividade e o clima de pânico de certas reações querem fazer parecer que o Brasil vive processo semelhante à Venezuela e que Lula é Chávez. Nem uma coisa nem outra. Tanto assim que Demétrio Magnoli, Reinaldo Azevedo, Willian Waack, César Benjamim, a Veja, a Globo, o Estadão e a Folha de São Paulo, podem falar as bobagens que quiserem e praticarem o pior tipo de jornalismo, sem qualquer ameaça. Não só eu, como a melhor parte do governo Lula preferimos ouvir esse tipo de besteira do que retornar à época da censura de uma ditadura apoiada por Globo, Estadão, Alexandre Garcia, etc - os mesmos que andam por aí acusando Lula e seu governo de "chavismo".
As críticas da suposta incoerência das opções de alianças políticas do governo Lula não levam em conta que a alternativa poderia ser a radicalização de um processo de súbita alteração institucional, com a concentração de poderes do presidente, atropelamento mais ou menos sutil das oposições e que, a se fiar na popularidade de Lula, certamente contaria com apoio e legitimidade popular. Lula não é só pragmático - é sensato e democrático. Sua opção por alianças um tanto incongruentes - admito, como petista, meu desacordo em relação à maior parte delas - certamente não justifica práticas fisiológicas denunciadas e apuradas nesse governo, mas tem o claro sentido não só de garantir governabilidade, no sentido estrito, como de garantir caminhos de consenso. O que os críticos - como Demétrio Magnoli, com sua idéia de "condomínio de poder" - se recusam a ver é que não se trata apenas de opção estratégica do PT, mas que esse arranjo de forças é fruto de nossa transição, toda ela feita sob controle das forças de suporte à ditadura, com adesão de setores de resistência mais moderada. Lula e o PT são frutos dessa transição. FHC e sua social-democracia aliada ao PFL também. Sarney, Collor, Gabeira, idem. É de transição, de uma transição generosa mas incompleta que falamos, e de que trata o III PNDH. A luta - como diria Lula em outros tempos - continua. O III PNDH é um capítulo dessa luta, que não pode ser obstada por formalismos de uma visão jurídica do século XIX ou por argumentos de pânico. É uma luta que vai dizer qual o tipo de democracia que queremos e teremos.
Um comentário:
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