terça-feira, 18 de janeiro de 2011

Um poema

O poema abaixo é da Fabiana, do blog Fabiana Blues, e ela postou como comentário ao post As mulheres na justiça, aqui no meu blog. Achei bacana, e resolvi publicar.
 
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Conteúdo de direito

do que só cabe no dever ser
do que não chega até o suporte fático
realidade – dos textos jurídicos tão alienada
princípíos a que clama toda alma amargurada
daquilo que silencio, do qual não se diz nada
gritar para si mesmo sem saber como fazer
consolidar artigo quinto e cartas da mais alta alegoria
símbolos todos ou um quadro de Gauguin
nossas próprias mãos desataremos
estender ao amigo ermo solidária solidão
quem sou eu pra incluir alguém? quem sou pra fazer nada?
estou num grupo, numa classe e não sou isto
meus conjuntos se intercalam com outros tantos
como enxergar a conexão que há entre mim e o mendigo
que não me sustentará com honorários e, ainda assim, é quem mais precisa de meus serviços
fé, doação, caridade não são princípios do estado a que sirvo
é pela ordem que venho analisar o rebuliço
liberdade e igualdade na lei, no moinho e no morro
ah, fardo pesado, lutei tanto pra aprender e agora só quero da origem escapar
uma estrada, uma só estrada
olhar, olhar e ver, dar visibilidade
realidade crua, nua, difícil porque me compromete
uma só estrada pra seguir
é a linha de onde vim endereço da partida pro lugar aonde vou chegar?
listar os deserdados? fazer estudos de caso?
convocar sociólogos e antropólogos pra revolução jurídico-social?
ah, direito, entidade conservadora
como posso eu te ajudar a concretar?
tu que nasceste das demandas constituídas
como convives com essa massa excluída de direitos indiscretos
da correção monetária do crédito escritural à saúde de um trabalhador químico-industrial
como em ti refletir as cotas, os ensaios, os perdões, as brincadeiras das crianças descalças?
pensamento em curva, linha cruzada, vida turva, precisa-se clarear
quero falar um pouco do mundo que conheço
onde direito é só uma faculdade pra se ter terceiro grau
talvez não me leve a nada
é só a estrada que importa
terra, falta, granito e sal
os meninos da nossa rua
as enchentes das nossas casas
os pesadelos dos nossos pais
a saúde do namorado
a penosidade das colegas municipárias
a educação que se esquiva por entre os muros da escola social
o risco de curto circuito por uma iluminação precária, informal
a água está rolando pela tua calçada
uma distribuição tola do mal
tudo que vai há de voltar
isto se, com o impulso, não nos derrubar no próprio lugar
falar do olhar escondido no olho do menino na sinaleira?
a arte do direito de ser e viver é ponte que eu também preciso arquitetar
Fabiana
 
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2 comentários:

Dra. Natasja disse...

Fabiana, que incrível! Tão difícil ver alguém juntar razão e sensibilidade de um modo tão tocante. Devíamos usar o seu texto nas aulas para os alunos de direito.

Anônimo disse...

Que honra! Obrigada! "Isso" foi o meu início de monografia, praticamente o projeto dela, que meu orientador, o ilustríssimo e magnânimo Dr. José Alcebíades, engenhosamente, adubou com carinho, paciência e resiliência artística e científica, chamada "Angústias sociológicas de uma estudante de direito: retratos e perspectivas de sobrevivência em sociedades multiculturais". Fico muito, mas muito feliz por poder compartilhar com vocês, com seus leitores, com as mentes brilhantes do nosso país. Pra mim, é uma grande dádiva, já que, tantas vezes a gente não sabe o destino das criações. Ter agradado ao Dr. Frederico de Almeida e também a Natasja é grandioso presente que recebo de braços, olhos, boca abertos.