A posse de Dilma Rousseff na presidência da República fez com que até seus críticos e opositores admitissem a importância de se ter, pela primeira vez, uma mulher naquela posição. Nas relações privadas, no mercado de trabalho e na política a posição da mulher tem sido, de fato, secundária e desproporcional.
Não é diferente o que acontece no sistema de justiça brasileiro. Embora se alardeie por aí a feminização das carreiras jurídicas, os dados indicam que quando mais se sobe na hierarquia das instituições e organizações profissionais da justiça brasileira – OAB e escritórios de advocacia, tribunais do Judiciário e Ministérios Públicos – menor é a participação feminina. A primeira mulher a chegar ao nível das cúpulas da justiça foi Eliana Calmon, ministra do STJ desde 1999 – hoje são cinco mulheres, incluindo a pioneira Calmon. Até hoje, o STF só teve duas mulheres em sua composição – Ellen Gracie e Carmen Lúcia, ambas ainda em atividade, sendo que a primeira foi nomeada somente no ano 2000.
O TST no ano de 2007 e o CNJ em sua primeira composição (2005-2007) possuíam cinco e três mulheres em seus quadros, respectivamente. No caso dos Ministérios Públicos dos estados, estudo promovido pela Secretaria da Reforma do Judiciário mostra que as mulheres representam 33,6% do corpo de promotores, e apenas 19,2% do grupo de procuradores de justiça – proporções, ainda assim, melhores do que as verificadas entre primeira e segunda instância do Judiciário, que têm 24,8% de mulheres entre juízes de primeiro grau e 12,6% dos magistrados de segunda instância, segundo dados de pesquisa patrocinada pela Associação dos Magistrados Brasileiros.
Dados de março de 2010 indicavam que dos 27 tribunais de justiça estaduais e do Distrito Federal, apenas três (Alagoas, Tocantins e Bahia) eram presididos por mulheres). No que se refere à OAB, mesmo se considerando que as mulheres já são mais da metade dos advogados inscritos no país atualmente, apenas um dos quatro principais cargos da diretoria do Conselho Federal, eleita em 2009, é ocupado por uma mulher (Márcia Melaré, Secretária-Geral Adjunta). Entre os 81 membros do Conselho Federal formado nas eleições de 2009, apenas sete (8,61%) são mulheres. Por fim, é importante dizer que, naquelas mesmas eleições profissionais de 2009, nenhuma das seccionais estaduais da Ordem elegeu uma mulher como presidenta.
O mesmo parece ocorrer no interior da advocacia organizada nos maiores escritórios e sociedades de advogados do país: segundo dados do Anuário da Advocacia 2007, produzido pela Análise Editorial, embora entre associados (o "segundo escalão" dessas organizações privadas de advogados) as proporções de membros do sexo feminino (48%) e masculino (52%) sejam bastante equilibradas, entre sócios (a liderança das organizações de advogados) os homens predominam em proporção sensivelmente maior (75%) do que a de mulheres (25%). Importante observar que, sendo pequena a diferença entre os números de anos completos desde a formatura no curso de direito de sócios (formados há doze anos, em média) e de associados (formados há oito anos, em média), a diferença entre as proporções de homens e mulheres verificadas nos dois grupos de advogados não pode ser atribuída a uma progressiva feminização, verificável entre gerações diferentes, mas sim, exclusivamente, a uma estrutura de poder e dominação entre os gêneros estabelecida no interior das organizações de advogados.
Os dados sobre os advogados indicam, portanto, que não se trata apenas de um problema quantitativo e geracional. Há, de fato, uma divisão sexual do trabalho jurídico, que atribui papéis e funções aos membros das carreiras jurídicas de acordo com o gênero. Isso se percebe na menor presença das mulheres nas posições superiores das hierarquias jurídicas, mas também em certos estereótipos criados – muitas vezes de forma falsamente elogiosa – acerca de como as características femininas se adequam melhor a certas funções do trabalho jurídico ("mulheres são melhores juízas de família porque entendem melhor do assunto"; "mulheres são melhores/piores juízas porque usam a sensibilidade, e não só a razão no ato de julgar", etc), ou de como a mulher se distancia dos atributos femininos, associando o rigor e a dureza no trato (especialmente no caso de juízas) a características positivas (e masculinas) de uma boa profissional (o estereótipo da juíza ou advogada "durona").
Por meio desses mecanismos de distinção social, o acesso das mulheres às posições de poder fica prejudicado. Por outro lado, aquelas mulheres que conseguem chegar às posições de poder na justiça brasileira tendem a negar o efeito de discriminação, ou a ter sua própria posição, por mais isolada que seja, como um exemplo de que essa divisão sexual do trabalho jurídico é coisa do passado, ou um bloqueio facilmente superado. Além disso, não raro o acesso dessas mulheres às posições de poder se dá na fase de maturidade avançada, após a maternidade e o casamento. As poucas mulheres presentes no STJ e no TST em geral chegaram àqueles tribunais com mais de 50 anos de idade, já com filhos crescidos ou sem filhos, muitas delas divorciada. Entre seu colegas homens, é bem mais comum que tenham chegado com idades entre 40 e 50 anos, e com seus casamentos preservados e filhos criados. Dessa forma, os papeis socialmente atribuídos às mulheres como mães e esposas impedem que elas construam caminhos mais curtos em suas trajetórias rumo ao topo das carreiras jurídicas.
Frederico de Almeida é advogado e cientista político. Participou de diversas pesquisas sobre a administração e a reforma da justiça. Foi pesquisador e Coordenador-adjunto do Núcleo de Pesquisas do IBCCRIM; pesquisador do CEBEPEJ e do Ministério da Justiça; Coordenador de Prática Jurídica da Escola de Direito de São Paulo da FGV; e Coordenador-Geral de Supervisão da Educação Superior do Ministério da Educação. Atualmente é assessor de Relações Institucionais da PROTESTE Associação de Consumidores. Edita o blog POLÍTICA│JUSTIÇA (http://politicajustica.blogspot.com).
(Artigo originalmente publicado no site Última Instância em 8 de janeiro de 2011).
2 comentários:
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