Embora não seja inédita na justiça brasileira, é emblemática em vários sentidos a recente decisão do juiz Augusto Drummond Lepage, da 2ª Vara de Família e Sucessões de Pinheiros, na cidade de São Paulo, de reconhecer união estável entre duas mulheres. A começar pela iniciativa da ação, patrocinada pela Defensoria Pública de São Paulo.
Além desse aspecto, a decisão soma-se a uma série de outras decisões judiciais e administrativas, no mesmo sentido de reconhecimento dos direitos homoafetivos. Na esfera administrativa, o governo federal tem sido bastante ativo no reconhecimento desses direitos, especialmente para fins previdenciários, por meio do INSS, ou de recolhimento do Imposto de Renda.
Já no âmbito do Poder Judiciário, as decisões favoráveis aos direitos dos homossexuais – especialmente aqueles relacionados ao reconhecimento de uniões afetivas e da possibilidade de adoção – já se tornaram relativamente comuns, extrapolando o pioneirismo de alguns juízes e tribunais isolados (refiro-me, especialmente, a Maria Berenice Dias e ao Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul) e definindo as bases para a construção de uma importante jurisprudência no assunto. Obviamente (e infelizmente), não se pode ver nessas decisões judiciais esparsas uma mudança estrutural na visão que o Judiciário tem acerca da família, da sexualidade e das relações humanas – ao contrário (e infelizmente), arrisco dizer que esse padrão ainda é conservador e resistente ao reconhecimento desses direitos.
Ainda assim, acredito que os fundamentos para uma nova postura da justiça brasileira e de seus operadores pode ser verificada nas estratégias judiciais de advogados e do Ministério Público, e nos argumentos decisórios de juízes e desembargadores nesses casos.
E, no que se refere aos fundamentos das decisões de reconhecimento dos direitos homoafetivos, eu aponto um último e fundamental aspecto pelo qual a decisão do juiz Lepage é emblemática. Pelo pouco que conheço do conteúdo da decisão, o juiz deixou expresso seu entendimento de que a falta de legislação específica sobre o casamento homossexual – como a proposta há alguns anos pela então deputada federal Marta Suplicy, e como a aprovada recentemente na Argentina – não impede que se reconheça esse tipo de união como base de uma estrutura familiar. Segundo o juiz, "o preâmbulo da Constituição é expresso ao dispor que a sociedade brasileira é fundamentalmente fraterna, pluralista e sem preconceitos, sendo que os princípios da igualdade e da dignidade da pessoa humana (...)também impõem uma interpretação ampliativa do texto constitucional a fim de assegurar às pessoas de orientação homossexual o mesmo tratamento legal dispensado aos de orientação heterossexual".
E mais: para chegar a essa conclusão, o juiz não se limita a uma interpretação fechada, hermética da Constituição, pois busca num fato da realidade a razão de seu esforço interpretativo e de sua decisão: "Família não é mais sinônimo de casamento de um homem com uma mulher. Logo, no Estado Democrático de Direito todos têm o direito de se unirem em relações monogâmicas, independentemente da orientação sexual".
A desconstrução superficial que fiz do raciocínio do juiz pode parecer trivial, até mesmo para um estudante de primeiro ano de um curso de direito, já iniciado nas primeiras aulas e leituras de Introdução ao Estudo do Direito. Acontece que não é tão obvia, como sugerem alguns manuais e teóricos do direito, a relação entre realidade e norma na aplicação da lei pelo juiz. Tanto assim, que muitos direitos hoje consolidados no que entendemos por cidadania demoraram anos – às vezes séculos – para serem reconhecidos, e essas lutas por reconhecimentos incluíram, não raro, longas e intensas batalhas judiciais. E, nessas batalhas, além da lei e do direito, estão em jogo conceitos, preconceitos, posições de classe, ideologias.
Por esse aspecto acho a decisão do juiz Lepage emblemática, pois ela afirma expressamente que a ausência de lei específica sobre o tema não pode ser impedimento para o reconhecimento judicial de um direito acatado pelos fundamentos da nossa Constituição e de nosso Estado de Direito, e que brota do que há de mais básico e espontâneo na experiência humana – o afeto.
Isso não quer dizer que o movimento homossexual deva deixar de lutar pela afirmação legislativa de seus direitos, inclusive no que se refere ao casamento. Pelo contrário: essa é uma luta fundamental, que definirá os contornos jurídicos do casamento homossexual e pacificará as divergências que ainda entravam o reconhecimento administrativo e judicial dos direitos homoafetivos. Porém, enquanto o Congresso Nacional, os partidos políticos e os candidatos a cargos eletivos se apegam a preconceitos e ao proselitismo religioso, juízes conscientes saem na frente, trilhando um caminho para a afirmação desses direitos, que tende a ser irreversível num futuro não muito distante.
Frederico de Almeida é advogado e cientista político. Participou de diversas pesquisas sobre a administração e a reforma da justiça. Foi pesquisador e Coordenador-adjunto do Núcleo de Pesquisas do IBCCRIM; pesquisador do CEBEPEJ e do Ministério da Justiça; Coordenador de Prática Jurídica da Escola de Direito de São Paulo da FGV; e Coordenador-Geral de Supervisão da Educação Superior do Ministério da Educação. Atualmente é assessor de Relações Institucionais da PROTESTE Associação de Consumidores.
Edita o blog POLÍTICA│JUSTIÇA (http://politicajustica.blogspot.com)
(Artigo originalmente publicado no site Última Instância em 18 de janeiro de 2011).
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