A Organização dos Estados Americanos fez o que o STF (Supremo Tribunal Federal) não teve coragem de fazer: reconhecer que a Lei de Anistia contraria convenções internacionais, que os crimes praticados pelo regime militar devem ser apurados, e os responsáveis por eles condenados. A decisão anunciada nesta terça feira, dia 14 de dezembro, condena o Brasil em caso levado à OEA sobre a Guerrilha do Araguaia e os desaparecidos políticos na repressão militar àquele movimento de resistência.
Quando o STF julgou a questão ainda em 2010, a partir de ação da Ordem dos Advogados do Brasil que questionava a constitucionalidade da Lei de Anistia, os ministros da corte entenderam que o perdão da lei se estendeu aos dois lados do conflito político instaurado pelo Golpe de 1964 e pelo Ato Institucional nº 5 de 1968, e que opôs a barbaridade das forças de segurança do Estado e a diversidade de estratégias, pacíficas ou armadas, de resistência ao regime de exceção.
Argumentos tortuosos apareceram naquele julgamento, buscando sustentar que havia uma igualdade de condições no conflito, no momento da luta e também do perdão, referendando, com argumentos jurídicos aparentemente mais sofisticados, o velho argumento que até hoje se utilizam os militares e defensores do regime de 64: tratava-se de uma guerra, e na guerra tudo vale.
Também buscou-se, naquele julgamento, associar a Anistia às condições da redemocratização política no Brasil, naquele momento. Não estavam de todo errados os ministros que assim argumentaram: a Lei de Anistia foi parte do pacto da transição, que evitou a derrocada violenta do regime, mantendo os generais na condução do processo de sua retirada do poder e permitindo uma recomposição relativamente controlada da oposição política a partir do autorizado MDB (Movimento Democrático Brasileiro) e do retorno à vida pública de exilados e presos políticos.
Mas é preciso fazer algumas diferenciações. A primeira delas é que anistia não é esquecimento. Portanto, não se pode deixar de buscar apurar responsabilidades, ainda que para garantir o direito à memória e à verdade e para um reconhecimento simbólico da responsabilidade do Estado e de seus agentes – afinal, apesar da Anistia, os presos e exilados políticos se submeteram a processos judiciais e tiveram condenações formais e públicas pelos seus crimes, o que até hoje não aconteceu com torturadores ou executores a soldo ou mando do Estado.
A segunda diferenciação a ser feita é que uma anistia política não é condição em si de uma transição ou de um regime democrático. É, ao contrário, característica de alguns processos de transição democrática, controlada pelo regime e não-violenta, como foi no Brasil e na também na Espanha franquista. É, portanto, resultado de uma correlação de forças momentânea.
Entretanto, a correlação de forças políticas daquele momento não se cristalizou no tempo, e se ainda representa significativamente a constelação de atores, grupos e discursos políticos de nossa cena política contemporânea, não o faz de forma estática, mas sim por meio de uma dinâmica de conflito ainda aberto, embora parcialmente contido pelas regras do processo democrático.
Afinal, que foram todas as manifestações agressivas e preconceituosas vistas ao longo de 2010, contra o terceiro Plano Nacional de Direitos Humanos (com suas propostas sobre reforma agrária e direito à memória) e contra a então candidata à presidência Dilma Rousseff (ex-militante da resistência clandestina e presa política do regime militar), se não o prolongamento dos conflitos criados pelo regime militar e a exposição das feridas ainda abertas de nossa transição?
O simples fato de que esses temas ainda são trazidos ao debate público com tanta paixão e intensidade na oposição de opiniões é demonstrativo do fato de que nossa transição política ainda não acabou. Além de todo o entulho autoritário legislativo e institucional do Estado brasileiro, da persistência do autoritarismo nas relações mais cotidianas e nas práticas institucionais, e da desigualdade social ainda persistente, a ausência de reconhecimento da responsabilidade do Estado brasileiro e seus agentes pelos crimes praticados durante o regime militar, e a negação do direito è memória e à verdade sobre o que aconteceu naquele período ainda são elementos mal equacionados de um processo de transição democrática que não deve se esgotar na estabilidade de um sistema representativo partidário e competitivo.
Ao revestir de argumentos jurídicos aparentemente sofisticados o senso comum de que a Anistia pôs uma pedra no assunto e valeu para os dois lados, o Supremo Tribunal Federal agiu politicamente (como não pode deixar de ser numa corte constitucional), mas de modo raso, parcial e comprometedor de seu papel numa ordem constitucional democrática.
A decisão da OEA traz o assunto de novo ao debate político e jurídico, e num governo de uma ex-militante presa e torturada do regime militar, eu espero que esse fato represente um novo incentivo à rediscussão da matéria. Se esse debate não chegar a uma revisão da Lei de Anistia, com o processamento e a responsabilização dos criminosos de Estado, mas alcançar ao menos resultados no reconhecimento simbólico de responsabilidades e no resgate da memória e da verdade sobre o período, creio que já será uma conquista e tanto, considerando-se todo o tempo decorrido desde o fim do regime militar e as peculiaridades de nossa transição.
A maior parte dos ex-militantes que conheço, tenham optado pela luta armada ou pacífica, não se arrependem nem escondem o que fizeram – ao contrário, são em geral muito orgulhosos disso, como devem ser, à exceção de alguns falsos arrependidos como José Serra e Aloysio Nunes Ferreira. Tenho certeza de que a maior parte deles não teria (como não tem) nenhum problema em assumir seus atos praticados naquele período, até mesmo porque, como já disse, eles já foram todos processados e responsabilizados juridicamente à época.
Frederico de Almeida é advogado e cientista político. Participou de diversas pesquisas sobre a administração e a reforma da justiça. Foi pesquisador e Coordenador-adjunto do Núcleo de Pesquisas do IBCCRIM; pesquisador do CEBEPEJ e do Ministério da Justiça; Coordenador de Prática Jurídica da Escola de Direito de São Paulo da FGV; e Coordenador-Geral de Supervisão da Educação Superior do Ministério da Educação. Atualmente é assessor de Relações Institucionais da PROTESTE Associação de Consumidores. Edita o blog POLÍTICA│JUSTIÇA (http://politicajustica.blogspot.com).
(Artigo originalmente publicado no site Última Instância em 15 de dezembro de 2010).
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