A questão do poder de investigação do Ministério Público é mote de uma intensa mobilização do órgão (e de seus críticos) nos últimos anos. Relacionada com a expansão das atribuições do MP após a Constituição de 1988, e com as ações do órgão no combate à corrupção e ao crime organizado, a defesa do poder de investigação do MP recebeu ontem novo impulso, com a decisão do Supremo Tribunal Federal que negou habeas corpus a réu em ação penal que questionava, justamente, a legitimidade do órgão para a coleta de provas pré-processual.
Contra o poder de investigação do MP está a crítica dos advogados e teóricos garantistas, especialmente. Pesquisa feita pelo Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, da qual participei, percebeu que o poder de investigação do MP opõe os grupos profissionais jurídicos, mesmo quando há outros temas que unem suas opiniões – como por exemplo, a defesa dos direitos difusos e a preservação das garantias processuais. Se os promotores pesquisados são (obviamente) favoráveis à inovação, os juízes majoritariamente os acompanham nessa opinião, e os defensores públicos são radicalmente contrários. Porém, essa mesma pesquisa mostrou que, apesar do vigor do garantismo no debate político-criminal, sua adesão entre os "práticos" do direito é mitigada pelas contingências da lide cotidiana com os problemas da justiça criminal.
Os defensores do poder de investigação do MP alegam, em geral, que essa prática está diretamente relacionada às demais atividades do órgão na defesa do interesse público e dos direitos difusos. Alegam, também, que a investigação paralela é a alternativa em face de polícias e policiais corruptos e ineficientes.
Duas observações sobre isso. A primeira é que eu não vejo, em tese, problemas na investigação conduzida pelo MP. O problema é que nosso sistema não foi concebido para isso – não, ao menos, para o tipo de investigação que o MP conduz criminalmente. Apesar do poder formal que o órgão possui para acompanhar o inquérito policial e solicitar provas nessa fase, o que a prática mostra é que membros do Ministério Públicos utilizam-se em geral da figura do inquérito civil – instrumento de instrução de futuras ações civis públicas – para realizarem verdadeiras investigações criminais. E, no processo penal, a relação entre formalidade e garantia é muito difícil de ser quebrada sem prejuízo à segunda.
Nenhum problema com a inovação institucional, pois sei que as instituições se transformam – e, além disso, questiono os argumentos principiológicos, que buscam a "pureza" dos arranjos institucionais e dos institutos jurídicos em suas formulações teóricas originais (como acontece, em geral, com aqueles que defendem não a separação de poderes prevista na Constituição ou verificada na prática do sistema político, mas sim aquela supostamente delineada por Montesquieu, como se fosse a única e original). O fato é que, ao contrário do que argumentam os defensores do poder de investigação do MP, não há previsão constitucional ou legal para isso – e o fato de não haver vedação, nesse caso, não é exatamente a mesma coisa... Para resolver parcialmente esse problema de falta de amparo legal, o Conselho Nacional do Ministério Público, em sua primeira gestão, emitiu resolução regulamentando a investigação criminal pelo órgão.
A segunda observação diz respeito à corrupção e ineficiência da polícia. Ao contrário do que ocorre com o poder de investigação do MP, há sim previsão expressa do papel de controle externo da polícia pelo Ministério Público. Em outras palavras: se há corrupção na polícia, cabe ao MP combatê-la, controlando a atividade policial, e participando dela nos limites deixados pela lei. Criar uma solução alternativa não resolve o problema da investigação criminal como um todo (que vai muito além dos casos de repercussão) e nem o da polícia, que continuará ineficiente e corrupta sem quem a controle, e tendo quem faça seu trabalho.
Pensando em médio e longo prazo, e tendo em mente uma solução institucional mais sofisticada, seria interessante que as relações entre Judiciário, MP e polícias fossem melhor equacionadas em uma profunda reforma da legislação processual e das instituições e políticas de segurança pública. Pensar que policia faz somente segurança pública, e promotores e juízes fazem somente justiça é um equívoco que está na base do descontrole sobre as polícias, na inefetividade da investigação policial e na percepção geral de impunidade que produz a atuação do Judiciário nessa área. A figura do juiz de garantias, criada pelo projeto do novo Código de Processo Penal provavelmente surgiu com o objetivo de repensar o desenho institucional do inquérito, mas não avança na articulação das demais esferas institucionais. Por outro lado, quando se fala em reformas da polícia, a defesa da unificação das forças civis e militares raras vezes avança na reflexão sobre a forma e a qualidade do inquérito policial e sobre as práticas de produção da verdade em nosso sistema jurídico – que envolvem, necessariamente, Judiciário e Ministério Público. Talvez a presidência do inquérito pelo MP, atribuindo-se à polícia função executiva e técnica de investigação, seja uma solução intermediária capaz de regrar uma situação que ameaça fugir do controle – e, em processo penal, regras formais e garantias constitucionais não podem mesmo ser dissociadas.
Pensando em curto prazo, o que ocorre nessa questão é uma movimentação de uma instituição emergente, em busca de mais espaço institucional, legitimação e poder. Deixando de lado os "modelos" previstos na doutrina e na Constituição, a prática da política da justiça é a de um conflito entre grupos e instituições profissionais, que disputam poder no interior de um campo político divido pelas fronteiras geográficas e pela clássica distinção entre acusação, defesa e julgamento. Nessa prática, pouco importa, muitas vezes, a atribuição formal de um órgão – importa, sim, o uso que ele faz dessa atribuição.
É o que ocorre, por exemplo, no debate sobre a possibilidade das Defensorias Públicas ajuizarem ações civis públicas. Faz todo sentido político e histórico que a Defensoria Pública supere a visão liberal antiquada da assistência judiciária aos "pobres no sentido jurídico do termo", para atuar na defesa efetiva do interesse público e de grupos sociais marginalizados do acesso à justiça e a bens públicos. Nesse caso, o Ministério Público é radicalmente contrário – como foi radicalmente contrário à possibilidade de entidades civis ajuizarem ações civis públicas, nos debates da Lei da Ação Civil Pública. Há membros do Ministério Público que colocam as ações civis públicas feitas pelas Defensorias como uma ameaça ao MP, de nível equivalente às propostas de redução de atribuições ou "lei da mordaça", que geralmente vêm de parlamentares sob investigação do órgão. Não são, definitivamente, a mesma coisa. Se há uma comparação possível, o que ocorre na relação entre Defensoria e MP nessa questão só é comparável ao que ocorre na relação entre MP e polícia na questão do poder de investigação do Ministério Público. A diferença, nos dois casos, é a posição do MP em relação ao monopólio que se vê ameaçado. Em comum, nas duas situações, uma visão salvacionista (chamada pelo cientista político Rogério Bastos Arantes de voluntarismo político), que coloca o MP acima da sociedade, em sua suposta capacidade superior de equacionar problemas políticos e sociais.
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