O caso dos meninos violentados sexualmente e cruelmente mortos na cidade de Luziânia (GO) é de fato chocante. Daí ser compreensível (mas não necessariamente aceitável) que haja clamor público, revolta e desejo de vingança, e que Willian Bonner e Fátima Bernardes, no Jornal Nacional, refiram-se ao acusado como "monstro" - com a naturalidade de quem usa as palavras "acusado", "indiciado", ou qualquer outro termo técnico que caberia melhor à situação, sem prejudicar a veracidade dos fatos, o entendimento público da notícia, e principalmente a qualidade do jornalismo.
O problema que o caso de Luziânia levanta, especialmente por conta do histórico do acusado e de suas passagens pelo sistema criminal, é mais fundo. Esse caso escabroso, por trás do sensacionalismo da mídia e da comoção popular, mostra um dos nós de nosso sistema penal.
Segundo nossa legislação penal, o inimputável (aquele que não tem consciência de suas ações e de sua responsabilidade) não pode receber pena, deve receber medida de segurança, que em tese corresponderia a uma internação para tratamento psiquiátrico. Aí começa o problema. Medidas de segurança são um tiro no pé, para a defesa e para o acusado: não são pena, mas também não estão sujeitas a prazo máximo. Na prática, o sentenciado a medida de segurança pode passar o resto da vida em uma instituição psiquiátrica, o que equivaleria à prisão perpétua, formalmente recusada pelo nosso ordenamento jurídico.
Além disso, as instituições psiquiátricas para as quais os sentenciados a medidas de segurança vão são um inferno, exemplo de degradação humana, física e mental. Além de perpétua, a pena que não é pena converte-se em pena degradante, cruel.
Importante dizer também que há graus de inimputabilidade, e que mesmo aquele que recebe uma pena "comum", deve se submeter a avaliação psicológica em caso de progressão de regime - e foi o que aconteceu com o acusado dos crimes de Luziânia. O problema aí é de uma difícil interlocução de saberes especializados bem diferentes, cada um com uma própria visão sobre o homem, sua racionalidade e sua ação. Uma leitura breve, mesmo por leigos, de qualquer manual ou livro de divulgação científica nas áreas de direito penal e de psicologia vai ver que cada um apresentará uma definição e uma concepção diferente sobre o que é o homem, o que é sua racionalidade, como se desenvolve sua ação (e, nesse último aspecto, melhor nem mencionar a divergência que haveria se também a teoria social entrasse nesse debate). A psicologia que os juristas estudam nas faculdades de direito é rasa, velha, insuficente para acompanhar a evolução da psicologia e da psiquiatria e para uma boa compreensão das ações humanas. Por outro lado, o desenvolvimento da psicologia e da psiquiatria forenses encontra num Código Penal de 1940 (e em toda a doutrina produzida com base nele) um forte elemento de resistência à sua compreensão, tendo em vista seu caráter evidentemente subalterno em relação ao saber jurídico, no que se refere ao funcionamento do sistema penal. Junte-se a isso a precariedade da maior parte das funções não-jurídicas e auxiliares da polícia e da justiça - de peritos a escreventes, de psiquiatras forenses a oficiais de justiça, todos são deixados de lado pelo Estado e carecem da formação, dos investimentos e da especialização que, na prática, são inversamente proporcionais à importância das funções que desenvolvem.
Por fim, diga-se que, em geral, as alegações de insanidade são vistas pelo senso comum punitivista como estratégias de defesa de advogados mal-intencionados e como desculpa esfarrapada de vagabundo, bandido. Por essas e por outras, se o sistema penal está destinado ao controle estatal da miséria, a crueldade de seu funcionamento (já evidente na seleção social de sua clientela e na indignidade do tratamento dispensado a vítimas e condenados) fica ainda mais evidente quando ele se vê frente a frente com as dimensões desconhecidas - e não-codificáveis - da mente humana.
The morning read for Tuesday, Nov. 26
Há 10 horas
7 comentários:
Mais um bom texto. Disse tudo: um lado amarrado a um codigo de 1940,e outro atado a psicologia rasa. Ambos convergindo pra um sistema penal falido.
O seu post expressa bem o caos em que vive o Brasil. O tema é muito complexo e envolve inúmeras variáveis. De um lado temos o problema social - base de tudo. O dito pedófilo, notadamente sofredor de abusos e agressões quando criança, teve uma vida de excluído (como a maioria dos pobres deste país) e não recebeu nenhum auxílio do Estado, mesmo pagando seus impostos. Já ferido em sua alma, foi jogado num sistema carcerário desumanizador. Resultado: saiu + desumanizado que entrou. É um ciclo vicioso: a cobra mordendo o próprio rabo.
O Estado e a falta de competência, inteligência, sensibilidade e decência de seus agentes públicos é o grande culpado da míséria que aflige o país.
O deplorável nível intelectual de nossos pensadores - já que o Brasil está em 88. no quesito "educação", perdendo até para o Paraguai, espelha muito bem nossa realidade: o Estado, consubstanciado por suas instituições, é comandado e administrado por verdadeiros boçais que, com palavras e "poses" de autoridade, se prestam tão somente a receber salários e se acomodar no "glamour" de seus cargos.
Há uma necessidade urgente de desagregação de todo o aparato Estatal e sua completa reconstrução. A autogestão cidadã - a socidade holográfica é a única saída para este estado de caos. Só o povo efetivamente governando, de forma humana e descentralizada, será capaz de erguer este país. Quando compreendermos que somos capazes de governar e administrar a nação, de forma coletiva e com respeito, solidariedade e amor ao próximo - coisa que o Estado e seus agentes não têm - seremos capazes de trazer, de volta, a humanidade que nos foi furtada.
Obrigado pelos comentários. Esse problema da inimputabilidade e das medidas de segurança é muito grave e delicado, e raramente mencionado nas discussões sobre reformas do sistema penal.
Fantástico seu post, parabéns! A única coisa que deixa indignado qualquer ser humano é perceber que a força das instituições, mesmo falidas, supera a intenção de ressocializar, seja que tipo de criminoso for. Some-se a isso, em minha modesta opinião, que o movimento da luta anti-manicomial no Brasil esqueceu de tratar especificamente da questão das medidas de segurança, tão necessárias a essa natureza de delinquentes, de modo que, como voce bem disse, a estrutura dos localis existentes para o cumprimento dessa pena são simplesmente depósitos humanos de deturpados mentais, sem qualquer recurso mínimo de atendimento psico-social que seja. Entendo que, se houvesse uma flexibilização com fins a permitir a privatização de centros de reabilitação de medidas de segurança, para atendimento de presos dessa natureza, com convergencia não filantrópica, mas de atuação com resultado em atendimento (mesmo que perpétuo) fiscalizado pelo Estado, acredito que, no mínimo, os locais seriam equipados com médicos e psiquiatras devidamente remunerados para, EFETIVAMENTE avaliarem a perspectiva de retorno ou nào ao seio social de indivíduos dessa natureza. Pena que no Brasil, falar disso soa como se fossemos favoráveis ao crime... na verdade, somos favoráveis à prevenção do que está chegando e ao tratamento do que já está ai! Parabens!
Obrigado pelo comentário, Vinicius. Acho que você tocou num ponto fundamental: a questão da inimputabilidade e do tratamento do transtorno psíquico não é descuidado apenas pelo direito penal, pois como você disse, o movimento anti-manicomial (que considero um avanço, com iniciativas bem-sucedidas), não contemplou o problemas das medidas de segurança.
Concordo com você também quando diz que o debate sobre o tema tende a ser maniqueísta, sendo que qualquer proposta de tratamento pode ser considerada uma forma de defesa da criminalidade e da maldade humana. Nesse caso de Luziânia, vi membros do MP culparem a revisão, pelo STF, da Lei dos Crimes Hediondos, que passou a admitir a progressão de regime. A solução, então, é mais pena? Parece-me que não, e é triste ver membros do MP que sequer consideram medidas de aprimoramento das medidas de segurança.
Vamos prosseguir com o debate!
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