O artigo de Boaventura de Sousa Santos, na edição de hoje da Folha de São Paulo (reproduzido abaixo), levanta boas questões sobre o ativismo judicial, tema inevitável dos debates políticos, acadêmicos e jurídicos contemporâneos - embora, muitas vezes, na minha opinião, o debate se coloque um tanto fora do lugar ou de maneira superficial, seja na ingenuidade dos cientistas políticos deslumbrados com um admirável mundo não tão novo assim, seja na inconsequência dos discursos políticos de um lado e de outro do debate, seja na ignorância ou má-fé de juristas que ou exaltam em demasiado, ou renegam o ativismo que praticam.
A primeira questão que o artigo de Boaventura coloca é: todo e qualquer ativismo é bom? Essa, certamente, é uma questão sem resposta, porque desconheço quem defenda a afirmação genérica que a pergunta coloca. Passo então à segunda pergunta: só o ativismo de "esquerda", ou "progressista" é bom? Para essa pergunta, muitos responderiam positivamente, ainda que excluindo da afirmação a palavra "só". Refiro-me a militantes sociais, juristas "alternativos" e estudantes de direito de esquerda que veem (um tanto ingenuamente, na minha opinão), o direito como meio de transformação social e depositam suas esperanças em uma nova hermenêutica, no positivismo de combate ou na jurisprudência alternativa. Concordo com os objetivos esperados por aqueles atores: decisões judiciais, interpretações do direito e novas legislações que traduzam e consolidem os interesses dos setores dominados, na luta de classes que (desculpem-me os conservadores) não desapareceu e nem desaparecerá tão cedo. Mas vejo ingenuidade quando buscam um potencial transformador ontológico nas estruturas do velho direito liberal; e também vejo ingenuidade na esperança depositada em juristas "alternativos" e em suas obras culturais "progressistas" (leis, decisões, doutrinas), porque me sugerem a expectativa perigosa e elitista de um reino de sábios bem intencionados ou vocacionados, baseado, em grande parte, em um pensamento radical de classe média (para usar a expressão de Antônio Cândido no clássico prefácio de Raízes do Brasil), muitas vezes revestido de marxismo vulgar e/ou idealismo utópico (o mesmo que Oliveira Vianna via nas obras de Rui Barbosa e de nossos juristas liberais). Não quero generalizar essa crítica a todo o movimento do direito alternativo, ou alinhar-me aos setores mais conservadores dessa briga - quero apenas denunciar o que considero voluntarismo e elitismo existente nesse campo alternativo do direito, mesmo quando não declarado, assumido ou consciente.
A terceira questão que o artigo de Boaventura coloca, portanto, é: o ativismo é normal, ou inevitável, faz parte do jogo institucional e por isso deve ser incluído na luta política? A essa questão se associa uma outra: o ativismo ameaça a sepração de poderes e a legitimidade democrática, e por isso deve ser evitado a qualquer custo? Responderia afirmativamente à primeira questão, por exemplo, o cientista político Werneck Vianna, embora seu posicionamento esteja em grande parte associado a um otimismo em relação ao papel dos juízes que o aproxima dos voluntaristas que critiquei há pouco. Por outro lado, responderia afirmativamente à segunda questão boa parte da classe política brasileira, da esquerda à direita - a depender dos interesses afetados por essa ou aquela decisão judicial.
Minha opinião é a de que, sim, o ativismo judicial é inerente à organização política da justiça e do Estado, faz parte do jogo institucional e por isso deve, sim, fazer parte do cálculo e das estratégias dos atores políticos em suas lutas na defesa de seus interesses. A partir dessa percepção é que me surpreende o deslumbramento de muitos cientistas políticos com o tema da judicialização da política - o fenômeno é novo ou eles é que só perceberam agora que as decisões judicias são movidas por interesses e interferem na dinâmica política? Mais uma vez ressalvo: não estou aqui generalizando ou desqualificando um dos objetos de pesquisa mais importantes da agenda contemporânea das ciências sociais no mundo e no Brasil; a crítica aqui é dirigida ao mesmo tipo de voluntarismo e ingenuidade que afeta, na minha opinião, alguns militantes, juristas e estudantes de direito que deixam de questionar, com rigor e profundidade, o objeto de seu discurso, seja ele normativo (no caso dos "alternativos" do direito) ou descritivo (no caso dos cientistas políticos). Mas, sendo inevitável, é preciso considerar que esse ativismo ocorre cotidianamente e em diversas instâncias da justiça, e pode ser conservador ou progressita - e aí está o que muitos não vêem em suas análises e discursos.
Dada essa minha opinião, contudo, é preciso admitir: a prudência liberal que condena e quer evitar o ativismo não é totalmente sem razão. O limite de qualquer ativismo judicial deve estar no estado de direito e no princípio da legalidade, boas heranças do liberalismo político. Discordo dos liberais, entretanto, na tentativa de pré-definir e restringir "estado de direito" e "legalidade" como se fossem conceitos estanques no tempo e no espaço, e como se fosse possível impedir o ativismo por decreto - dessa forma, ao contrário, o que os conservadores conseguem atacar é, no máximo, o ativismo que seja mais evidentemente contra-hegemônico ou inovador, deixando o campo aberto para a ação daquele ativismo que, apenas reproduzindo as estruturas de poder vigentes, é o mais conservador e sutil que existe.
Por isso acredito - e nisso estou com boa parte (ou a parte boa?) dos "alternativos" do direito - que colocam a própria legalidade e o conceito de estado de direito como móveis de suas lutas políticas. Ou seja: não basta lutar por decisões judiciais "progressistas" ou apenas aplaudi-las; é preciso, a todo o tempo da luta política, questionar e redefinir o conceito de legalidade e de estado de direito. Para isso, os próprios juristas envolvidos nessa luta devem colocar à prova o seu próprio papel na construção dessa nova legalidade, sob o risco, como já disse, de um elitismo intelectual da parte vocacionada e consciente de nossa classe média escolarizada. Por isso é que insisto (em minhas pesquisas acadêmicas e em minhas opiniões nos debates políticos mais corriqueiros sobre o assunto) no papel ou na configuração política não só do "direito" e da "justiça" (nas concepções genéricas, abstratas, estruturais e funcionalistas que costumam ter nesses debates), mas principalmente dos juristas reais, concretos, que dão concretude ao direito e à justiça - sejam eles de esquerda ou de direita.
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São Paulo, sexta-feira, 04 de dezembro de 2009
TENDÊNCIAS/DEBATES
A contrarrevolução jurídica BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS
ESTÁ EM curso uma contrarrevolução jurídica em vários países latino-americanos. É possível que o Brasil venha a ser um deles.
Entendo por contrarrevolução jurídica uma forma de ativismo judiciário conservador que consiste em neutralizar, por via judicial, muito dos avanços democráticos que foram conquistados ao longo das duas últimas décadas pela via política, quase sempre a partir de novas Constituições.
Como o sistema judicial é reativo, é necessário que alguma entidade, individual ou coletiva, decida mobilizá-lo. E assim tem vindo a acontecer porque consideram, não sem razão, que o Poder Judiciário tende a ser conservador. Essa mobilização pressupõe a existência de um sistema judicial com perfil técnico-burocrático, capaz de zelar pela sua independência e aplicar a Justiça com alguma eficiência.
A contrarrevolução jurídica não abrange todo o sistema judicial, sendo contrariada, quando possível, por setores progressistas.
Não é um movimento concertado, muito menos uma conspiração. É um entendimento tácito entre elites político-econômicas e judiciais, criado a partir de decisões judiciais concretas, em que as primeiras entendem ler sinais de que as segundas as encorajam a ser mais ativas, sinais que, por sua vez, colocam os setores judiciais progressistas em posição defensiva.
Cobre um vasto leque de temas que têm em comum referirem-se a conflitos individuais diretamente vinculados a conflitos coletivos sobre distribuição de poder e de recursos na sociedade, sobre concepções de democracia e visões de país e de identidade nacional.
Exige uma efetiva convergência entre elites, e não é claro que esteja plenamente consolidada no Brasil. Há apenas sinais nalguns casos perturbadores, noutros que revelam que está tudo em aberto. Vejamos alguns.
- Ações afirmativas no acesso à educação de negros e índios. Estão pendentes nos tribunais ações requerendo a anulação de políticas que visam garantir a educação superior a grupos sociais até agora dela excluídos.
Com o mesmo objetivo, está a ser pedida (nalguns casos, concedida) a anulação de turmas especiais para os filhos de assentados da reforma agrária (convênios entre universidades e Incra), de escolas itinerantes nos acampamentos do MST, de programas de educação indígena e de educação no campo.
- Terras indígenas e quilombolas. A ratificação do território indígena da Raposa/Serra do Sol e a certificação dos territórios remanescentes de quilombos constituem atos políticos de justiça social e de justiça histórica de grande alcance. Inconformados, setores oligárquicos estão a conduzir, por meio dos seus braços políticos (DEM, bancada ruralista) uma vasta luta que inclui medidas legislativas e judiciais.
Quanto a estas últimas, podem ser citadas as "cautelas" para dificultar a ratificação de novas reservas e o pedido de súmula vinculante relativo aos "aldeamentos extintos", ambos a ferir de morte as pretensões dos índios guarani, e uma ação proposta no STF que busca restringir drasticamente o conceito de quilombo.
- Criminalização do MST. Considerado um dos movimentos sociais mais importantes do continente, o MST tem vindo a ser alvo de tentativas judiciais no sentido de criminalizar as suas atividades e mesmo de o dissolver com o argumento de ser uma organização terrorista.
E, ao anúncio de alteração dos índices de produtividade para fins de reforma agrária, que ainda são baseados em censo de 1975, seguiu-se a criação de CPI específica para investigar as fontes de financiamento.
- A anistia dos torturadores na ditadura. Está pendente no STF arguição de descumprimento de preceito fundamental proposta pela OAB requerendo que se interprete o artigo 1º da Lei da Anistia como inaplicável a crimes de tortura, assassinato e desaparecimento de corpos praticados por agentes da repressão contra opositores políticos durante o regime militar.
Essa questão tem diretamente a ver com o tipo de democracia que se pretende construir no Brasil: a decisão do STF pode dar a segurança de que a democracia é para defender a todo custo ou, pelo contrário, trivializar a tortura e execuções extrajudiciais que continuam a ser exercidas contra as populações pobres e também a atingir advogados populares e de movimentos sociais.
Há bons argumentos de direito ordinário, constitucional e internacional para bloquear a contrarrevolução jurídica. Mas os democratas brasileiros e os movimentos sociais também sabem que o cemitério judicial está juncado de bons argumentos.
BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS, 69, sociólogo português, é professor catedrático da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra (Portugal). É autor, entre outros livros, de "Para uma Revolução Democrática da Justiça" (Cortez, 2007).
Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo. debates@uol.com.br
2 comentários:
Caro Frederico,
Meu primeiro comentário em seu blog serve para, antes de tudo, registrar minha satisfação diante da possibilidade de encontrar nas suas postagens uma leitura científica das facetas políticas que marcam a atuação de juristas, juízes e outros elementos da "máquina" do direito. Como advogado, você deve ter sentido que apenas a migração para a ciência política e para a sociologia permitem olhares desse tipo.
Sobre o tema da postagem, observo duas questões.
Primeiro, a lucidez com que você enxerga o problema do ativismo judicial permite que fujamos das análises "científicas" dos que estão sempre empolgados com a possibilidade de um "governo de homens-juízes", tipo que preencheria o posto do "governo de leis". Sua observação sobre o valor dos argumentos liberais que deixam boas heranças é, como bem sabe, raridade no jogo entre as visões avaliativas do ativismo.
Segundo, minha opinião é de que juristas e cientistas políticos precisam cuidar um pouco mais do lado "conservador", "formalista", "não ativista" (uso os termos com alguma liberdade e, logo, imprecisão), de forma a estudar seriamente tais posturas, que, segundo vejo, são, por igual, culturas políticas, talvez menos explícitas em razão de promoverem uma adesão mais forte ao direito positivo. Em resumo, vejo que a radiografia feita em termos binários e adversariais (ativistas x não ativistas, formalistas/conservadores x críticos/alternativistas) serve como tipificação de categorias, mas pode ser enriquecida com estudos sobre o que as "figuras do direito" leem (se é que o fazem consistnetemente) e aplicam em suas atividades. O trabalho é grande e árduo, mas apenas por esse caminho - acho - há possibilidades de ler os cenários de modo consistente.
Um abraço,
Sérgio Mendes Filho.
Caro Sérgio,
Agradeço o comentário. Espero contar sempre com sua leitura e seus comentários para darmos continuidade aos debates que esse blog propõe.
Grande abraço,
Frederico
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