terça-feira, 19 de junho de 2012

Ex-advogado

Ontem protocolei o que espero que seja minha última petição como advogado – justamente, o pedido de cancelamento de minha inscrição como advogado, na Seccional de São Paulo da Ordem dos Advogados do Brasil.

Em determinado momento de minha trajetória, ser advogado mostrou-se o caminho "natural" a ser seguido. Após várias crises vocacionais durante o curso de Direito, um interesse inicial pelo garantismo constitucional do Direito Processual me levou a um encantamento pelo Direito Processual Penal, e daí, ao estágio em advocacia criminal.

Tive o privilégio de ser o único estagiário em uma banca renomada de advocacia criminal, que funcionava ainda nos moldes tradicionais da advocacia: poucos advogados (naquele caso, apenas três), trabalhando em sistema de associação (sem a constituição de uma sociedade de advogados). Naquele escritório, compartilhei da memória de advogados que atuaram em defesa de presos políticos do regime militar e em outras questões de direitos humanos. Aprendi muito de uma advocacia artesanal, num momento em que a profissão atingia talvez seus maiores níveis em termos de massificação e organização do serviço em escala comercial, como nos grandes escritórios que atraíam grande parte de meus colegas de faculdade.

Já certo de minha efetivação como advogado naquele pequeno, seleto grupo, tomei uma decisão radical, cujo desdobramento mais tardio talvez tenha sido a petição que protocolei ontem na OAB: um tanto desiludido com certas práticas da advocacia e do sistema de justiça, e alimentando há algum tempo o desejo de seguir uma carreira acadêmica (ainda que, eventualmente, em paralelo a uma atuação prático-profissional), decidi ingressar em um mestrado em Ciências Sociais, para poder me dedicar aos temas que me interessavam no mundo do Direito, sem, contudo, as limitações de uma atuação profissional estrita. Para isso, acreditava naquele momento, eu deveria me dedicar totalmente a esse objetivo, sob pena de ser engolido pela rotina intensa da advocacia em um pequeno, mas requisitado escritório, e com isso acabar adiando o ingresso em uma pós-graduação.

Os primeiros anos desse novo rumo foram difíceis. Prolonguei por algum tempo a vida de estudante dos primeiros anos de faculdade (mesada dos pais, alguns bicos, hábitos modestos), enfrentei a desconfiança e o espanto de amigos, familiares e colegas de profissão, fui reprovado nas primeiras tentativas de ingresso no mestrado em Ciência Política e em Sociologia. Hoje, tenho certeza de que tomei o rumo certo. Mestre e doutor em Ciência Política, sei que construí uma trajetória até agora relativamente consistente na área acadêmica, me dedicando a temas que nunca se afastaram do mundo do Direito, como planejei inicialmente: acesso à justiça, reforma do Judiciário, profissões jurídicas, ensino do Direito.

Durante esse percurso, porém, mantive ativo meu vínculo com a OAB, um tanto por insegurança quanto ao futuro, um tanto pela esperança (nem sempre assumida) de, de alguma forma, encontrar um tipo de atuação profissional como advogado que me satisfizesse pessoalmente e que permitisse tocar adiante minha carreira acadêmica. Fui assessor jurídico na administração pública municipal, e percebi que, se tivesse tomado gosto pelo Direito Administrativo ainda estudante, talvez minha trajetória fosse diferente – mas é impossível voltar atrás... Fui coordenador de um Núcleo de Prática Jurídica em curso de Direito (posição que, de acordo com as regras da OAB, exige inscrição como advogado) e tive a oportunidade de aliar a reflexão sociológica sobre ensino do Direito e profissões jurídicas a um projeto pedagógico prático-profissional, de formação de novos advogados. Atuei no setor de relações institucionais ("lobby") de uma associação de consumidores, e nessa função apresentar-me como advogado sempre abriu portas e desfez resistências. No mais, tive um ou dois casos de "pequenas causas" cíveis e criminais, em geral para ajudar amigos, com nenhuma ou simbólicas remunerações.

Porém, conforme minha carreira acadêmica avançou e se consolidou, a insegurança quanto ao futuro se dissipou e minha satisfação pessoal encontrou cada vez mais alimento nas atividades de pesquisa e docência. Por isso, manter meu vínculo com a OAB, minha inscrição como advogado tornou-se algo cada vez mais desnecessário: não precisaria mais recorrer à advocacia como "plano B" de subsistência, e não precisaria mais encontrar em um tipo ainda desconhecido de advocacia a satisfação que as aulas e as atividades de pesquisa me davam.

Mais do que isso, eu passei a não me identificar mais como advogado. Isso não quer dizer apenas que passei a não mais me apresentar como advogado, mas que, essencialmente, deixei de compartilhar da imagem pública e do sentimento de corpo que caracterizam a profissão. Sem assinar uma petição há mais de cinco anos, com pouquíssima experiência prático-profissional como advogado (apesar de 10 anos como inscrito na OAB), passei a sentir um certo desconforto em me apresentar como membro de um grupo profissional de cujos valores fundamentais deixei de compartilhar, e de cujas condições de existência – a prestação de um serviço de acesso à justiça – eu já não mais participava.

Dificilmente ouvimos alguém dizer que é um "ex-advogado". Mesmo pessoas que pouco atuam, porque passaram a se dedicar a outras atividades, mantêm sua inscrição e sua carteira da OAB e eventualmente se identificam como advogados. Entre eles, muitos colegas acadêmicos com trajetórias muito parecidas com a minha. Inclusive desses colegas acadêmicos, ouvi reações espantadas e desmotivadoras quando anunciava minha intenção de cancelar minha inscrição na OAB. Por isso, e se não fosse a forte e intencional carga política da minha atual identificação como "professor" (de formulários a serem preenchidos a apresentações cotidianas do convívio social, com o objetivo de afirmar que a opção pela docência e pela pesquisa também constitui uma identidade profissional e social), eu acharia graça e certa exclusividade em me apresentar, a partir de agora, como um "ex-advogado".

13 comentários:

Fernando Amaral disse...

A docência ganha um artilheiro admirável. E a advocacia perde mais um pouco de sua pequena capacidade de inovação.

Boa sorte!!!

Horácio disse...

Fiz o mesmo há 3 anos. Não fiz antes porque ainda, em alguns momentos, atuava no NPJ. Primeiro pedi licença, por um período. Mas no final acabei optando por sair dos quadros da OAB. Seja bem vindo ao seleto clube dos "ex advogados por opção". Abraço. Horácio

Pedro Crespo disse...

Eu entrei há pouco tempo na faculdade de direito e estou com as mesmas idéias que te levaram à mudança! Parabéns! Provavelmente, seguirei seus passos.

Frederico de Almeida disse...

Caros Fernando, Horácio e Pedro,
Obrigado pelas palavras de apoio, e pelo acesso ao blog!
Grande abraço,
Frederico

Lucas Gutierrez disse...

Que bom que achastes um rumo para tua vida e que tens convicção do que queres.

Mas acho uma pena que não advogues mais, que não sejas juiz, promotor ou defensor.

Digo isso não porque acho que essas carreiras percam muito sem a tua presença (talvez até percam, não sei), mas porque acredito que professores devem não ser apenas acadêmicos, devem estar sempre e continuamente envolvidos com o dia-a-dia da profissão que ensinam.

Tua atitude, ao meu ver, te tornará um professor pior do que poderias ser no longo prazo.

Tomara que eu esteja errado. Boa sorte e um forte abraço.

Frederico de Almeida disse...

Prezado Lucas,
Sua assertiva parte do pressuposto de que o Direito é um saber eminentemente prático, e que só pode ser produzido e reproduzido a partir da prática. Trata-se de meia verdade.
Embora concorde contigo no que se refere aos professores e às disciplinas dos Eixos Profissional e Prático dos cursos de Direito (ou seja, aquelas relativas aos campos dogmáticos do Direito e às suas aplicações práticas na solução de conflitos e na regulação da vida social), não vejo porque deixar de ser advogado (coisa que, na prática, pouco fui), me torna um pior professor de Ciência Política.
Ao contrário, minha relação com "o dia-a-dia" do Direito vem das diversas pesquisas empíricas sobre a administração e a reforma da justiça, bem como as profissões e as elites jurídicas. Além disso, tenho formação teórica consistente nos conhecimentos necessários a uma compreensão científica e rigorosa (e não por isso distante da "prática") das relações entre poder e direito, entre política e justiça.
E, mesmo entre os professores de disciplinas dogmáticas, aplicadas, não creio que o perfil do docente que também é profissional seja o único possível. O corpo docente ideal de uma instituição de ensino é aquele que sabe equilibrar acadêmicos (docentes e pesquisadores) em tempo integral com aqueles profissionais (que, contudo, devem ter trajetória e títulos acadêmicos) capazes de trazerem para o curso e seus alunos a dimensão prática, aplicada das disciplinas em que ensinam.
Por fim, seu argumento apenas reforça a tendência, bastante tradicional em nosso campo jurídico e acadêmico, de sobrepor o "saber prático" ao "saber acadêmico", como se anos de magistratura ou de advocacia substituíssem a formação rigorsa e sistemática que a pós-graduação dá (ou deveria dar) aos docentes e pesquisadores acadêmicos em Direito. Não acho que substitua, mas que são complementares. E, sendo complementares em um curso ou na composição global de um corpo docente, não os vejo como necessariamente complementares nas trajetórias individuais de todo e qualquer professor, de toda e qualquer disciplina.
Obrigado pela sua contribuição ao debate.
Um abraço,
Frederico

Lucas Gutierrez disse...

Grande resposta, gostei de lê-la, pois falamos coisas parecidas com pontos de vistas opostos, o que gera um falso antagonismo.

Realmente, ser advogado em pouco ou nada contribui para aulas de ciência política. Mas atuação prática em ciência política contribui.

Da mesma forma, ao que sei e sei bem sobre IES, ficar vinculado a uma só disciplina é bem difícil.

Não me interprete mal, não acho que o saber prático seja superior ao saber acadêmico. Da mesma forma que você, considero que são complementares. Sempre digo: "prática sem teoria é mero 'achismo', mas teoria que não se aplica na prática é uma péssima teoria e uma perda de tempo".

O que realmente pensamos diferente é que eu considero a união da teoria com a prática fundamental a todo e qualquer professor, sempre e em todos os casos.

Abraço

FONTAINHA, Fernando disse...

Caro Fred,

Parabéns pelo texto! Cancelei minha inscrição em agosto passado, estou para completar um ano de "ex-advogado". Tuas palavras me fizeram rever o porque do meu cancelamento, que se deu após cinco anos de licença, os quais passei no doutorado no exterior.

A real razão: não valeria a pena continuar pagando a anuidade, uma vez que meu cotidiano profissional, completamente tomado por atividades de docência e pesquisa, não mais me permitia o objetivo exercício de outra profissão. É claro que não sou uma vítima das consequências, optei por esta trajetória, e estou muito longe de me arrepender.

Você sabe o que penso sobre o multiprofissionalismo na nossa área. Atitudes como a sua qualificam tanto a docência/pesquisa quanto a advocacia.

Um abraço,

Fernando Fontainha

Frederico de Almeida disse...

Caro Fernando,

Obrigado pelo apoio e pelo comentário. Como disse em outro comentário, acho que o ensino do Direito é um espaço de diferentes perfis - mas que devem, contudo, ser bem demarcados entre si, sem a pretensão do "docente-total" (ou melhor, do "profissional-total", que é também e eventualmente um docente, como temos hoje), e muito menos com a hierarquização de saberes e de perfis, que na prática acabam por desvalorizar as experiências e os títulos acadêmicos.

Abraço,
Frederico

Direito Administrativo disse...

Colega vc jamais deixará de ser advogado, vc é advogado sem inscrição na OAB.
Boa sorte,
Rogério Frota

Leandro disse...

Parabéns pela tomada de decisão. Acredito que a profissionalização da docência nos cursos de Direito seja uma das soluções para um ensino melhor. Sou recém formado, já inscrito na ordem, e pretendo iniciar meu mestrado ano que vem. Partilho de suas angústias e, embora não possa fazer o mesmo ainda, planejo um dia ser professor com dedicação exclusiva. Bom saber que existem profissionais abrindo o caminho para os recém chegados.

Abraço,
Leandro

Frederico de Almeida disse...

Caro Direito Administrativo,

Tomo suas palavras como sendo de conforto e incentivo, e agrdeço por isso. Mas insisto em meu ponto, expresso no texto: não se trata de questão meramente formal (o registro na OAB); trata-se, ao contrário, de uma identidade profissional e social.

Nesse aspecto, não me identifico como advogado, mas sim como um acadêmico (professor e pesquisador). Mais do que isso, insisto em que são identidades diferentes, que não podem ser confundidas, embora possam se sobrepor ou se complementar em uma mesma trajetória individual.

Obrigado pela colaboração ao debate e pelo acesso ao blog!

Grande abraço,
Frederico

Frederico de Almeida disse...

Caro Leandro,

Obrigado pelo apoio e pelo acesso ao blog.

Desejo sorte em sua trajetória e espero contar contigo como colega da profissão acadêmica, em dedicação exclusiva ou compartilhada com outra atuação profissional.

Um abraço,
Frederico