sexta-feira, 30 de setembro de 2011

A quem interessa limitar o CNJ

Há uma peculiar conjugação de fatores políticos favoráveis à demanda da AMB (Associação dos Magistrados Brasileiro), que considera que o CNJ (Conselho Nacional de Justiça) extrapola limites constitucionais ao se sobrepor ao trabalho das corregedorias internas dos tribunais do Poder Judiciário. A AMB, liderada pelo desembargador Nelson Calandra, defende perante o STF (Supremo Tribunal Federal) que o CNJ só possa atuar em caráter subsidiário aos das corregedorias dos tribunais.

Calandra é desembargador, e ao contrário de seus antecessores na presidência da AMB — juízes de 1ª instância alinhados com o discurso modernizante de reforma da Justiça, apesar de críticos a vários pontos da Emenda Constitucional 45/2004, incluindo a própria criação do CNJ — fez campanha, se elegeu e assumiu a liderança da entidade com um forte discurso corporativista, reativo à reforma e valorizador da 2ª instância do Judiciário. Perfil e posições semelhantes tem o ministro Cezar Peluso, também desembargador e um dos dois únicos (ao lado de Luiz Fux) juízes de carreira no STF, que preside. Ambos, por fim, são oriundos do Tribunal de Justiça de São Paulo, tido por um dos mais conservadores e herméticos tribunais estaduais do país, e certamente um dos que mais resistiu à atuação do CNJ e a outras medidas de modernização da administração da Justiça, como a informatização, a padronização e a publicação de dados sobre o trabalho judiciário.

As relações entre primeira e 2ª instância são ponto sensível na política do Judiciário e no movimento associativo da magistratura. Embora essas associações respondam pela "classe", como um todo, elas são alvo de disputa intensa em seus períodos eleitorais, especialmente por parte dos magistrados de primeira instância, que veem nessas entidades um importante instrumento político nos conflitos corporativos com seus próprios superiores administrativos, os magistrados posicionados na 2ª instância. Uma vez no controle dessas entidades, os juízes de 1ª instância buscam representar a 2ª instância em suas diretorias e comissões, como forma habilidosa de composição política no interior da carreira. O movimento contrário, obviamente, também ocorre, quando um desembargador assume a presidência dessas entidades. Além disso, entre as várias entidades representativas da magistratura e seus segmentos, percebe-se uma clivagem significativa entre organizações mais próximas da 1ª instância e outras mais identificadas com a representação de interesses da 2ª instância.

A própria história do CNJ, órgão atacado pela AMB, é exemplo disso. Desde o início, os movimentos associativos da magistratura se manifestaram contrariamente à criação de um órgão de controle externo do Poder Judiciário, e foi graças ao lobby dessas entidades que o Conselho Nacional de Justiça nasceu como um órgão de controle praticamente interno, sendo composto por membros majoritariamente oriundos do próprio Judiciário. Mais do que isso, a indicação dos membros dos diversos segmentos da magistratura representados no CNJ — mesmo aqueles representantes da 1ª instância — é um processo fortemente controlado pelas cúpulas dos tribunais de 2ª instância e superiores.

O presidente da AMB à época da Reforma do Judiciário de 2004 era Rodrigo Collaço, um juiz de 1ª instância alinhado com os discursos e movimentos modernizantes da Reforma do Judiciário. Foi um importante interlocutor da Secretaria de Reforma do Judiciário, órgão do Ministério da Justiça que capitaneou o processo de aprovação da Emenda Constitucional 45/2004. Apesar dessa interlocução positiva, Collaço e a AMB sempre se manifestaram contrários ao controle externo da magistratura. Logo após a aprovação da Emenda Constitucional 45/2004, a AMB ingressou com ação direta de inconstitucionalidade no STF, questionando a adequação do CNJ à Constituição. O STF decidiu pela constitucionalidade do CNJ e de suas funções, e a essa decisão seguiram-se outras decisões importantes do Supremo confirmando a constitucionalidade das decisões do CNJ em temas específicos e importantes, como foi o caso da proibição do nepotismo nos tribunais.

Apesar dos discursos contrários ao CNJ — baseados, em geral, em uma preocupação legítima com a independência funcional dos juízes e a independência política do Poder Judiciário perante os demais poderes do Estado — os movimentos associativos da magistratura figuraram, desde o início das atividades do Conselho, como seus maiores demandantes, ao lado das associações representativas de servidores do Judiciário. Do outro lado, figuraram como os maiores demandados no CNJ os próprios tribunais, representados por suas cúpulas administrativas. Ficou claro, portanto, que apesar das críticas ao controle externo, as associações de magistrados rapidamente perceberam o poder do CNJ como um instrumento das mobilizações da 1ª instância em seus conflitos corporativos contra seus superiores administrativos, localizados na 2ª instância. Em geral, os móveis dessas disputas eram critérios e decisões das cúpulas dos tribunais a respeito de promoção na carreira, provimento de cargos e concursos públicos.

Não se pode deixar de ver, portanto, a atual controvérsia sobre os poderes do CNJ à luz dos interesses, muitas vezes conflitantes, da 1ª e da 2ª instância da magistratura. Calandra e Peluso, claramente contrários ao tipo de atuação que o CNJ teve em seus primeiros anos, representam, nesse aspecto, os interesses de uma segunda instância que tem sido claramente tolhida em suas práticas de controle local sobre carreiras e recursos dos tribunais estaduais e federais – incluindo o poder correcional.

Ao seu lado nas críticas ao CNJ encontram-se milhares de juízes de primeira instância sinceramente zelosos de sua independência funcional, e que resistem à ideia do controle externo. Eu, sinceramente, desconheço decisão do CNJ que tenha sido acusada por alguma associação da magistratura de ter de fato interferido na autonomia dos juízes em tomarem suas decisões em processos judiciais submetidos à sua apreciação – esse sim, o núcleo da ideia de independência funcional. Tendo a concordar, por outro lado, com parte das críticas que esses juízes de primeira instância fazem às pressões, que vêm do CNJ, no sentido de transformá-los em gestores de varas e cartórios, levando-os a trabalharem de acordo com um pouco refletido regime de metas e produtividade.

Quando Eliana Calmon, ministra do STJ (Superior Tribunal de Justiça) e Corregedora-Geral do CNJ, conhecida por não ter papas na língua, fala em "bandidos de toga", não está falando nenhuma mentira — afinal, há bandidos de toga, como há os de beca, de jaleco, os de farda e os de colarinho branco. Ao usar a palavra "infiltração", ela se refere a um fenômeno inevitável a qualquer grande organização, que é o da existência de pessoas cuja conduta vai no sentido contrário dos valores do grupo e das regras básicas de lisura, ética e interesse público. Solução para isso é o controle correcional, função das corregedorias dos tribunais, mas também do CNJ.

Porém, uma declaração forte como a que fez a ministra, num momento de aberto conflito político em torno do CNJ, apenas faz com que magistrados de 1ª e de 2ª instância, das Justiças estaduais e federal, comum e especializada, cerrem fileiras em defesa da magistratura e se posicionem claramente contra o controle externo. Nesse movimento de reação, a divergência de interesses entre os diversos segmentos da magistratura desaparece na superfície, mas faz com que, infelizmente, bem-intencionados e dedicados juízes se coloquem ao lado de desembargadores que arcaicamente resistem à modernização e à democratização dos tribunais, bem como daqueles magistrados, que se valem do cargo para praticarem ilegalidades.

Frederico de Almeida é Doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo e Coordenador de Graduação da Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas (DIREITO GV).

(Artigo originalmente publicado no site Última Instância em 30 de setembro de 2011)

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