sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

Conciliar é legal?

Nesta semana acontece a Semana Nacional de Conciliação, promovida pelo CNJ (Conselho Nacional de Justiça). A Semana, que tem o mote "Conciliar é Legal", vem sendo realizada pelo CNJ desde seus primeiros anos de existência, e busca, segundo o próprio Conselho, "estimular a solução de conflitos por meio do diálogo entre as partes, evitando que os processos se arrastem por muito tempo pelas diversas instâncias do Poder Judiciário".

Esse objetivo do CNJ se soma a um movimento, que vem de longa data no mundo do direito e em diversos sistemas de justiça nacionais, de estímulo e desenvolvimento dos meios alternativos de solução de conflitos, mundialmente conhecidos pela sigla em inglês ADR (Alternative Dispute Resolution), e em geral identificados pelo trio conciliação-mediação-arbitragem. Nesse aspecto, a iniciativa do CNJ é louvável. Sabe-se que o sistema de justiça brasileiro tem se mostrado muito resistente à introdução dos meios alternativos de solução de conflitos, e que, quando os acolhe, o faz de maneira a "colonizar" ou "capturar" a cultura do acordo, da informalização e da desoficialização da justiça, por meio de práticas e padrões culturais formalistas, estatistas e judicializantes.

Segundo uma pesquisa da Secretaria de Reforma do Judiciário, publicada em 2005 e da qual participei (Acesso à justiça por sistemas alternativos de administração de conflitos, relatório disponível no site da Secretaria), quase metade dos programas de solução alternativa de conflitos pesquisados era mantida por órgãos governamentais, sendo que desses, 51% eram mantidos por tribunais e varas judiciais. Especialistas em arbitragem têm apontado, por sua vez, a crescente judicialização da arbitragem – ou seja: um meio alternativo de solução de conflitos torna-se ineficaz na medida em que seus resultados concretos ou seus pressupostos contratuais (as cláusulas arbitrais) são questionadas na justiça pelas partes que, supostamente, seriam as maiores interessadas numa solução extrajudicial. Em minha pesquisa de mestrado sobre a advocacia e o acesso à justiça (disponível no site www.teses.usp.br) percebi o esforço da advocacia em transformar as ADR em atividade privativas da profissão, aumentando seu mercado de trabalho e excluindo a atividade dos leigos e dos bacharéis não-advogados.

Mais do que isso: mesmo em iniciativas de informalização da justiça, introduzidas por reformas processuais com o objetivo explícito de operarem no interior (e não à margem) das instituições e ritos formais da justiça – como o caso emblemático dos Juizados Especiais Cíveis – os resultados de pesquisas relativamente recentes têm sido frustrantes para aqueles que esperavam um nova cultura judicial, do acordo e da conciliação, seja no aspecto quantitativo, seja no aspecto qualitativo. No aspecto quantitativo, os percentuais de acordos alcançados nos processos analisados em diferentes estudos não ultrapassam, via de regra, a 30%. Segundo estudo da Secretaria de Reforma do Judiciário (Diagnóstico dos Juizados Especiais Cíveis, também disponível no site da Secretaria), o percentual de acordos verificados em audiências de conciliação, na média dos processos analisados em nove capitais, é de 34,5%. Quando se passa para a fase seguinte do procedimento dos Juizados – a audiência de instrução e julgamento, última chance de acordo – esse percentual é de 20,9%. Outro dado importante da pesquisa: de acordo com os processos analisados, a probabilidade de acordo diminui quando um advogado está presente à audiência de conciliação, representando uma das partes.

No aspecto qualitativo, a questão é ainda mais preocupante quando se pensa na possibilidade de uma "nova cultura" judicial, baseada no acordo. Como pesquisador do Ibccrim (Instituto Brasileiro de Ciências Criminais), participei da observação de mais de 100 audiências e de muitas entrevistas com usuários e funcionários dos Juizados Especiais Cíveis instalados nos CIC (Centros de Integração da Cidadania), um programa do governo do Estado de São Paulo baseado nas ideias de integração de serviços, solução alternativa de conflitos e mudança dos padrões de relações das instituições de justiça com a população. Em muitas audiências e relatos de usuários dos Juizados o que pude ver chega a ser assustador.

Via de regra, os funcionários dos Juizados responsáveis pela condução das audiências de conciliação não possuem treinamento algum para esse tipo de prática, que exige, na verdade, alguma expertise ou conhecimento especializado – e há uma ampla literatura nas áreas jurídica, da administração e da psicologia sobre isso. Essa lacuna, somada ao efeito positivo que a possibilidade de acordo tem sobre o volume e o fluxo de trabalho desses mesmo funcionários e dos juízes, leva muitas vezes à situação de acordos forçados ou impostos pelos funcionários e/ou juízes responsáveis pela conciliação, por meio de ameaças sutis (ou nem tanto) de uma possível sentença contrária ao interesse da parte, caso ela não aceite o acordo. Quando a pesquisa do Ibccrim se debruçou sobre a conciliação praticada informalmente (e estimulada pela concepção dos CIC) por promotores e delegados de polícia atuantes naqueles Centros, a coisa ficou ainda pior, uma vez ausentes os limites formais do procedimento judicial que garantem, em certa medida, a "paridade de armas" entre os litigantes e as garantias do contraditório (uma análise mais fina dessa situação pode ser encontrada na excelente tese de doutorado de Jacqueline Sinhoretto, Ir Aonde o Povo Está, de 2007, disponível em www.teses.usp.br).

Essa preocupação com a qualidade do acordo, surgida de minha experiência como pesquisador, me leva a questionar a validade dos esforços do CNJ em sua Semana Nacional de Conciliação. Ainda mais porque, além daquele objetivo expresso do Conselho de estimular uma solução mais ágil (e supostamente melhor, pois baseada no diálogo) entre partes conflitantes, o CNJ admite: segundo o que consta na página do órgão na Internet, a conciliação "é também uma forma de reduzir o grande estoque de processos na Justiça do País". Em outras palavras, pode estar acontecendo o que vi acontecer na conciliação praticada nos CIC: sob pretexto de melhorar o acesso e a qualidade da justiça por meio de práticas conciliatórias informais, pretende-se, na verdade, desafogar as varas e tribunais judiciais, reduzindo o estoque de processos e o volume de trabalho de juízes e funcionários.

Por isso, acredito que a Semana Nacional de Conciliação deve ser vista em face de outros dois objetivos do CNJ, nem sempre declarados em sua missão institucional. O primeiro, é o de sua legitimação social e de consolidação de sua posição institucional; nesse aspecto, o que o CNJ busca construir é uma boa imagem junto à população e aos órgãos políticos e judiciais, o que faz também por meio de seus Mutirões Carcerários e de decisões de grande repercussão social, como a proibição do nepotismo e a punição disciplinar de juízes. O segundo objetivo do Conselho é o de racionalizar a atividade judicial, o que o CNJ tem feito por meio da imposição de metas de produtividade. Nesse segundo aspecto, os juízes de primeira instância têm reclamado bastante da pressão exercida pelo Conselho (e por seus tribunais) pela melhora da produtividade e pela imposição de um modelo de juiz-gestor que, alegam os magistrados, eles não estão preparados ou interessados em assumir.

Ontem mesmo vi na TV que o CNJ buscava bater o recorde de acordos do ano anterior. Pergunto: quando se fala em conciliação, é possível falar em meta, recorde, números? Uma justiça mais ágil e racional, em termos de procedimentos e distribuição de recursos, é certamente desejo de todos. Por outro lado, qualquer esforço pelo desenvolvimento de meios alternativos de solução de conflitos em nossa cultura jurídica, social e política (tão marcada pelo estatismo e pelo autoritarismo) é bem-vindo. Entretanto, ao promover a conciliação nos moldes publicitários e em escala industrial que tem incentivado, sem investimentos igualmente abrangentes na reflexão sobre o método e na capacitação dos servidores judiciais como conciliadores, e ainda sem outras iniciativas de desoficialização e desprofissionalização da justiça (como a mediação comunitária e leiga), o CNJ, apesar das boas intenções, incorre no risco de transformar a conciliação em uma linha de montagem de solução rápida (e nem sempre adequada) de conflitos de massa – e, assim, promover uma justiça pobre para os mais pobres.

Frederico de Almeida é advogado e cientista político. Participou de diversas pesquisas sobre a administração e a reforma da justiça. Foi pesquisador e Coordenador-adjunto do Núcleo de Pesquisas do IBCCRIM; pesquisador do CEBEPEJ e do Ministério da Justiça; Coordenador de Prática Jurídica da Escola de Direito de São Paulo da FGV; e Coordenador-Geral de Supervisão da Educação Superior do Ministério da Educação. Atualmente é assessor de Relações Institucionais da PROTESTE Associação de Consumidores. Edita o blog POLÍTICA│JUSTIÇA (http://politicajustica.blogspot.com)

(Artigo originalmente publicado no site Última Instância em 2 de dezembro de 2010).

4 comentários:

Hélio disse...

Excelente artigo. Vi seu blog por acaso, o adicionei no google reader e estou gostando muito de seus textos.

Sobre o tema em questão, sempre vi com maus olhos a imposição de acordos por quem quer que seja (juízes do trabalho, conciliadores e promotores, estes, sobretudo, qnd da realização de transação penal).

Inclusive, no processo penal a questão é ainda mais crítica, pq a parte passiva, ainda antes de se tornar ré, pode ter imposta contra si uma pena sem processo, ainda que haja carência de ação, inclusive por falta de lastro probatório mínimo. No âmbito penal, deve-se repensar o momento para a transação penal, que deveria ocorrer somente depois de recebida (motivadamente) a denúncia, ocasião na qual o juiz já faria uma primeira filtragem para evitar acordos injustos para o réu. Mas isso não é observado, tal como foi devidamente analisado no artigo: a transação é admitida como forma de reduzir processos, ainda que mera análise do material probatório ou das condições da ação já seria suficiente.

Frederico de Almeida disse...
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Frederico de Almeida disse...

Caro Hélio,

Obrigado pela leitura e pelo comentário. Siga acompanhando o blog e debatendo os temas aqui.

Grande abraço,
Frederico

Frederico de Almeida disse...
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