Após anular um contrato de união estável entre dois homens homossexuais há poucas semanas, o juiz de direito Jeronymo Pedro Villas Boas repetiu sua decisão e considerou inconstitucional outra união estável homoafetiva submetida à sua apreciação. Não vou entrar no mérito dos argumentos jurídicos da decisão do juiz, ou da decisão do Supremo Tribunal Federal que considerou constitucional a união estável entre pessoas do mesmo sexo – e que foi duas vezes questionada pelo juiz de primeira instância, que a classificou como inconstitucional. Quero apenas tecer algumas considerações sobre o que representa a decisão desse juiz na estrutura do sistema de justiça brasileiro, na ordem constitucional vigente.
O primeiro ponto é: a decisão do juiz não poderia contrariar a decisão do STF, que tem caráter vinculante nessa questão. Concordemos ou não com a concentração do controle de constitucionalidade ou com o conteúdo da decisão do Supremo, o fato é que, para o bom funcionamento do sistema de justiça e para a legitimidade das decisões em questões constitucionais, a regra do jogo deve ser obedecida – e, nesse caso, a regra do jogo atribui ao STF a última palavra jurisdicional em questões constitucionais. O que isso significa em termos da repercussão da decisão do juiz goiano? Significa que sua decisão será necessariamente reformada em segunda instância, o que acaba com a polêmica e recoloca a questão nos termos definidos pelo STF, de acordo com os poderes a ele atribuídos. Como os próprios ministros do Supremo lembraram, o juiz poderia até expor sua discordância em relação à decisão do STF, em sua sentença, mas não poderia deixar de acatá-la.
O segundo ponto importante: não se trata apenas do espaço necessário de autonomia e independência do juiz individual, ou de mero conflito entre decisões de instâncias diversas – o que se resolve, como disse, com a revisão da decisão em instância superior. Ao decidir contra o STF, o juiz apelou para argumentos de fundo religioso, realizando uma perigosa mistura entre sua fé e seu ministério religioso (além de juiz, ele é pastor da Assembleia de Deus). Se não o fez explicitamente em sua sentença, mais focada em argumentos de constitucionalidade, o fez em declarações públicas nas quais apelou para a vontade de Deus, que o "impeliu" a decidir assim. Mais do que isso, quando provocado por jornalistas, assumiu ser pastor religioso, disse que não poderia dissociar sua função religiosa de sua função pública, e cobrou não-discriminação por esse fato. Para deixar ainda mais evidente sua motivação, participou de um ato político de desagravo à sua decisão, promovido pela bancada evangélica na Câmara dos Deputados.
Nesse segundo aspecto, a solução não está na revisão judicial da decisão do juiz pela segunda instância, mas sim no poder de controle disciplinar exercido pelo tribunal ao qual pertence o magistrado e pelo Conselho Nacional de Justiça. E, ao aplicar esse controle disciplinar administrativo, esses dois órgãos não estarão ferindo a autonomia ou a independência do juiz. Estarão sancionando a conduta de um funcionário público que é incapaz de efetivar a esperada imparcialidade do juiz, e de agir de acordo com os parâmetros constitucionais de um Estado laico.
O tipo de "desobediência civil" praticada pelo juiz Jeronymo Villas Boas com base na "vontade de Deus", além de moralista e conservadora em seu conteúdo , é perigosa em sua forma, pois tumultua desnecessariamente a hierarquia jurisdicional e o sistema judicial de controle de constitucionalidade. Se o Tribunal de Justiça de Goiás já resolveu o problema de forma, cassando a primeira decisão do juiz Villas Boas em sede de revisão judicial, resta agora saber se haverá consequências quanto ao conteúdo de suas decisões e de suas manifestações públicas por parte do CNJ. O problema é que o mesmo CNJ, quando instado a decidir sobre a permanência de símbolos religiosos em instalações judiciárias, afirmou que tal prática, herança indevida de nossa tradição católica na prática do Estado constitucionalmente laico, não feria a laicidade desse Estado. Por isso, se vier a punir o juiz goiano, o que é esperado, o CNJ demonstrará incoerência, fraqueza e discriminação, pois terá sido benevolente com a Igreja Católica quando decidiu sobre seus símbolos no "atacado", e rigoroso com o juiz-pastor evangélico no "varejo" ao repreender sua postura pública. Ainda assim, estará contraditoriamente coberto por uma Constituição que, ao instituir um Estado Democrático de Direito laico, apela, em seu preâmbulo, para a proteção de Deus.
3 comentários:
O aspecto contraditório da nossa fenomenologia institucional é uma constante. Nossas estruturas histórico-econômico-culturais, baseadas num liberalismo que nunca foi e numa arcaização ideológica que nunca deixou de ser, explicam a retórica de um Estado de Direito/Laico que custa a oferecer o mínimo de consenso existencial.
Juízes-pastores que pedem para não serem discriminados por discriminarem...
Parabéns pelo texto! :)
Caro Douglas, obrigado pelo comentário, e parabéns pelo seu blog! Vou adicionar aqui no meu. Abraço!
Caro Fred, concordo em parte. Não li a sentença, mas concordo com a impossibilidade de misturar argumentos religiosos com questões jurídicas. Também discordo da forma como o juiz agiu, de ofício, proferindo decisão que, a meu ver, exorbitou o poder correcional. Mas tem algo a ser considerado: para o sistema, seria adequado o cumprimento de decisões proferidas segundo as regras do jogo, não discuto; a questão complicada nesse particular julgamento - e que nada tem que ver com o mérito da decisão do STF ou do juiz goiano - é que o Supremo ignorou as regras do jogo, ao decidir. Explico. Houve o ajuizamento de uma ADPF, que não tem caráter vinculante e não poderia ter. Essa ADPF foi recebida como ADI, justamente para que se conferisse o caráter vinculante, o que me parece perigoso, em razão do precedente que produz, para outros casos (há uma vontade legiferante do Supremo); depois - e me parece o ponto mais complicado da decisão do Supremo - determinou-se o cumprimento de uma decisão de procedência sem que se possa conhecer os fundamentos (ao menos, não houve publicação formal de acórdão; a alegação de que o julgamento foi público, com o perdão da palavra, é mera retórica para tornar indiscutível o julgamento). Isso, salvo engano, fere frontalmente preceito constitucional (devido processo legal) e cria uma insegurança enorme: não se sabe qual a extensão da decisão do STF, o que, de fato, se tornou vinculante. Arrisco dizer que não fosse o STF, qualquer tribunal que proferisse decisão desse tipo (alterando a natureza da ação, conferindo efeitos não pleiteados pela parte autora) veria sua cassação pela Alta Corte, em razão da evidente nulidade. Ainda mais se ousasse dispensar a publicação do acórdão! Penso um pouco se o tema fosse outro, não tão aceito, quiçá envolvendo direito individual a ser defendido... ou, ainda, se a decisão do Supremo tivesse tido o sentido contrário? Seria ilegítimo considerar inconstitucional referida decisão? O Supremo estaria imune a erros e suas decisões, a revisão? Ainda mais quando ignoram regras fundamentais (veja, particularmente eu concordo com o mérito dessa decisão, discordo apenas da forma como foi proferida...)? Há inúmeras situações que reclamam interpretação do julgado, daí a temeridade dos atos do Supremo. É isso, espero contribuir para o debate. Parabéns pelo blog e pela análise! Abraço!
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