Causou muita polêmica (mais uma...) o advogado Ércio Quaresma, defensor do ex-goleiro do Flamengo Bruno, acusado de matar sua amante Eliza Samudio, ter assumido ser dependente de crack. O advogado mineiro assumiu publicamente sua dependência da droga como forma de evitar danos maiores à sua imagem, já que já sabia que circulava por aí vídeo no qual aparece consumindo crack em uma boca de fumo em Belo Horizonte.
O vídeo impressiona, como nos impressionam cotidianamente as imagens da degradação humana causada pelo crack, que já nos acostumamos a ver nas ruas e nos telejornais. Mas, sinceramente, fiquei realmente impressionado foi com a reação da Ordem dos Advogados do Brasil de Minas Gerais, que suspendeu preventivamente o advogado Quaresma após o vídeo e sua assunção pública da dependência, iniciando um processo disciplinar contra ele.
Não que a dependência química e o vídeo não possam ser discutidos pelo Tribunal de Ética e Disciplina da OAB/MG, mas já tenho aí algumas ressalvas em relação à posição da Ordem. De fato, está lá no Código de Ética e Disciplina da OAB uma disposição, um tanto genérica (como costumam ser as disposições desse tipo em quase todo código de ética e conduta profissional ou de grupo) sobre a imperiosa necessidade do advogado se portar (e se trajar, e tratar os demais) de acordo com a "dignidade da profissão". Mas quem define a "dignidade da profissão" concretamente, caso a caso?
O Tribunal de Ética e Disciplina, está claro. Mas pergunto: ofende a dignidade da profissão um profissional, que é também um ser humano, admitir a cruel dependência de uma droga tão devastadora, como sabidamente é o crack? Quero deixar de lado a grosseria da expressão "nunca entrei doidão em tribunal", utilizada por Quaresma para se justificar, para me focar no cerne da questão: o uso de droga, e mais especificamente, a humildade (e a humilhação) em se admitir o vício, são, em si, ofensivas à dignidade da profissão? Se o Tribunal de Ética e Disciplina da OAB/MG entender que sim, só estará reafirmando um moralismo de costumes, e uma dificuldade em lidar com as fraquezas e a complexidade alma humana que não são exclusivas da corporação dos advogados, mas estão embrenhadas na sociedade toda.
Mas que sinal passam a OAB e seu Tribunal de Ética ao punir Quaresma por essa sua conduta, mas não por outras recentes, e igualmente noticiadas e repercutidas? Refiro-me, especificamente, à agressividade um tanto pitoresca de Quaresma em sua estratégia de defesa de Bruno, desde o inquérito policial que apurou o desaparecimento de Eliza Samudio. Se os leitores e a OAB/MG não estão lembrados, logo no início do processo Quaresma partiu para o ataque contra a vítima – que desqualificou, por sua conduta sexual e sua participação em vídeo pornográfico – e as delegadas responsáveis pelo caso – a quem atribuiu apelidos pejorativos como "Mega Hair" e "Paquita".
Embora Quaresma tenha sido grosseiro e desrespeitoso também com os delegados (homens) a quem chamou de "Neandertal" e "Mudinho", quero me centrar em sua qualificação das mulheres envolvidas no episódio. Eliza Samudio não mereceria credibilidade como vítima (?), na visão do advogado, por sua conduta sexual liberada e por sua atuação como atriz em um vídeo pornográfico – mas seu cliente, homem, merece defesa e absolvição, apesar de sua conduta sexual permissiva e sua prática regular de orgias sexuais. Delegadas – ou seja, mulheres em funções tipicamente associadas ao universo masculino do poder e da violência estatais – são classificadas por atributos visuais identificados com a vaidade (o suposto aplique ou a cor do cabelo) como forma de terem diminuídas sua competência e seu profissionalismo na condução de um inquérito policial. Além disso, ao chamar os delegados, homens, de "Neandertal" e "Mudinho", Quaresma não deixa de denunciar o que considera inaceitável: o rebaixamento e a submissão dos homens (pré-humano, no caso do Neandertal, ou inativo, no caso do mudo), em relação ao protagonismo feminino na atuação policial. O machismo e o desrespeito de Quaresma não mereceriam reprimenda da OAB, por meio de seu Tribunal de Ética e Disciplina, ou, ao menos, por uma censura pública de seus dirigentes?
À época das declarações sexistas de Quaresma, a OAB, conforme se noticiou, chegou até a dizer que, caso os termos da defesa prévia apresentada pelo advogado em seu blog pessoal de fato fossem incluídas no processo judicial, ele poderia sofrer processo disciplinar. Ora, somente se o desrespeito e o machismo fossem incluídos nos autos? E por que agora, no caso do uso de crack, uma conduta da vida pessoal do advogado é motivo para uma reprimenda disciplinar? Por que o mesmo empenho da OAB/MG (e do presidente do Conselho Federal da Ordem, que referendou publicamente a decisão da seccional mineira) não foi mostrado quando Ércio Quaresma manifestou seu machismo e sua agressividade no exercício do direito de defesa do seu cliente – ainda que suas manifestações em blog pessoal não fossem replicadas, de fato, no processo judicial?
O direito de defesa e a liberdade de palavra do advogado são pilares fundamentais de qualquer sistema processual democrático. Porém, os excessos devem ser combatidos pela Ordem dos Advogados, a quem cabe o controle ético e disciplinar do exercício profissional. No caso das declarações desrespeitosas e machistas de Quaresma, trata-se de fato diretamente relacionado à atuação profissional do advogado, ao contrário de sua conduta pessoal marcada pela dependência química – que foi, de resto, assumida pelo profissional.
Se a OAB foi um dia vanguarda de alguma coisa, é porque se posicionou à frente da sociedade, muitas vezes contra o senso comum vigente. Ao se preocupar afoitamente em punir o advogado assumidamente dependente químico, mas relevar seus excessos verbais e sexistas no exercício do direito de defesa de seu cliente, a OAB rebaixa sua moralidade institucional – base de seu insistente posicionamento público como representante da vanguarda da cidadania – ao que há de pior na moralidade (ou melhor: no moralismo) de uma sociedade patriarcal, desigual, autoritária e conservadora, que criminaliza a dependência química e as práticas sociais e culturais desviantes, e submete suas mulheres à violência física e simbólica cotidiana.
(Artigo originalmente publicado em 24 de novembro de 2010 no site Última Instância)
2 comentários:
Frederico
Meus cumprimentos pela correta crítica à política de dois pesos e duas medidas adotada pela OAB, seja quanto a esse tipo de hipocrisia, seja quando decide adotar comportamentos partidários, como se depreende das falas e atos do Ophyr
Cavalcante.
Caro Pedro,
Obrigado pelo comentário. As decisões do Tribunal de Ética e Disciplina merecem um estudo e uma análise mais detalhada, pois acredito que dizem muito sobre a OAB.
Continue acompanhando o blog e deixando aqui suas opiniões!
Grande abraço,
Frederico
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